História de um temporal
Escapam-me
entre os dedos
palavras soltas,
frágeis,
ladinas,
Grandes
e pequeninas.
Bem tento segura-las,
ordena-las
educa-las
arruma-las
como as crianças
numa redacção.
Como desejava
a minha redacção
com o Sol ao fundo,
uma casa com jardim,
uma tília imponente,
sem passarinhos
p`ra ser diferente.
Cambadas de meninos
a brincar
muito arrumados
e sobretudo
muito bem comportados.
E distante,
na Catedral,
no meio de gente importante,
o Senhor Prior
no sermão do bem e do mal.
Mas as palavras fogem-me
Com destreza
agarro a primeira.
Coloco-a no papel.
Tristeza
Ali vai outra!!
Agarra!!
Beleza
Olha esse conjunto!!
Apanha!!
Mar
Certeza
Esperança
Partir
Horizonte
Afogado
Olha aquelas que vão a fugir!!
Temporal
História
Luz
Natal
Jesus
Como desejava
que a minha redacção
tivesse o Sol ao fundo.
Mas não foi assim
Pouco faltava para as sete. O mar era um lago. A luz do Sol aparecia no horizonte. Francisco saiu para o mar, como era costume. Costume que não era de todos os dias. Só quando o mar permitia. Mas nesse dia lançou o barco ao mar com uma grande esperança. Tinha a certeza. Ou quase a certeza. A beleza da manhã não o podia enganar. Ainda por cima o Natal era no dia seguinte. Tinha quase a certeza que ia apanhar muito peixe. E que dava para comprar aquela prenda que o António – o António era o seu filho de cinco anos, sabem? - que o António tinha pedido ao menino Jesus.
O Francisco saiu para o mar cheio de esperança.
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Não pensem que já sabem o resto da história.
Nada disso. Não houve nenhum temporal. O Francisco não foi engolido por nenhuma onda como nos filmes. A Vitória – a Vitória é a sua mulher, sabem? – a Vitória não veio à praia chorar o homem afogado, como nos romances. E como nas telenovelas.
Nem o António ficou órfão.
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A Vitória também viu o Francisco partir para o mar cheio de esperança. Também ela com a esperança na esperança dele.
Foi rápido a Francisco atingir o mar alto. O mar era como um lago. O horizonte sem nuvens. O Sol prometia ventura.
Lançou a rede onde a sua esperança e experiência lhe dizia haver muito peixe.
Logo no primeiro lanço sentiu a rede muito pesada. Cheio de euforia recolheu-a. Havia recolhido mais peixe em duas horas que em dias inteiros anteriores. Tanto peixe vendido já dava para a consoada da família. E sobretudo para a prenda do António. Havia de dizer-lhe o mesmo de Natais passados. Que o menino Jesus levara ao barco uma prenda. Só para ele. Aquela mesmo que havia pedido.
Regressou rápido. Pouco passava do meio dia. Iria à lota entregar o peixe que pescara.
O dinheiro que sobrasse daria ainda para comprar uns grandes brincos para a sua Vitória.
A lota estava fechada. Era dia de limpeza geral. Então ele não se lembrava que era véspera de Natal? E que no dia seguinte a lota estava fechada? E que ainda havia pelo meio o Sábado e o Domingo? Em quatro dias o peixe iria estragar-se todo.
E os brincos para a sua Vitória? E a consoada? E a prenda para o António?
Foi o António que me contou esta história. Era véspera de Natal. Tenho a certeza que tinha mais de setenta anos. Contava-a em todas as vésperas de Natal. Contava-a desde esse dia em que o menino Jesus deixou de levar a sua prenda ao barco do pai.
O seu olhar estava cheio de tristeza. O meu coração também.