Último desejo

No último dia

da minha vida,

cansei-me da solidão

de ser multidão

Nada tinha a perder.

Com jeito,

como quem ama,

sabendo que o feito

é o prenúncio

da fama,

coloquei uma rosa ao peito.

Desci a calçada

levando no peito

quase nada.

Somente a última flor

que encontrei

na berma da estrada.

Mostrei-me na praça pública.

Não disse uma palavra.

Apenas acenei

com gestos inseguros.

Tentei, sem sucesso, gritar

que não era o único

a sofrer

o pânico dos puros.

Vi dois ou três maduros

a parar

como quem goza

a visão dum demente.

De repente

eram mais de quarenta.

Julguei entenderem

a minha mensagem.

Foi-se juntando

uma multidão.

Dos que passeavam,

dos que passavam

por passar,

dos que iam entregar

a última encomenda,

dos que tomam café

sem emenda,

dos que vão à ultima sessão,

dos que querem ir embora

mas não vão.

Dos que vão ao banco

a correr,

dos que pisam o pé do parceiro

sem querer.

Senti a multidão hesitante.

Por um instante

senti que ia ser Rei.

Por um momento sonhei

ser o rei dos puros.

Não sei

porque impulso,

sem nada dizer,

um a um,

cada qual seguiu seu caminho

Fui o último a partir.

Mergulhei no rio.

Deixei meu testamento

na margem.

Num papel que encontrei

deixado pelo vento

escrevi:

Vou de viagem.

Quem quer sonhar comigo

que deixe o seu abrigo

e tome a carruagem.

Manuel Paulo
Enviado por Manuel Paulo em 17/09/2006
Código do texto: T242682