HISTÓRIA DE UM CÃO

(Luiz Guimaráes Filho (1878/1940)

 Uma das mais emocionantes poesias que li

(Às poetas Lúcia Constantino e Lavienrose, em especial,
defensoras, intransigentes, do amigo cão)

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo,
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos d’um camarada,
Na hora da partida. O cão, gemendo,
Não me queria acompanhar por nada,
Enfim – mau grado seu – o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava...
“Adeus “ - me disse - , e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verás como rasteiro,
Te indicará os mais sutis perigos,
Adeus! E que este amigo verdadeiro,
Te console no mundo ermo de amigos.”

Veludo a custo habituou-se à vida,
Que o destino de novo lhe escolhera,
Sua rugosa pálpebra sentida,
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando,
A sua cauda – caminhava errante,
À luz da lua – tristemente uivando.

Toussenel, Figuier e a lista imensa,
Dos modernos zoológicos doutores,
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo,
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! Era um artigo.

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-se importantes
Notícias do Brasil e de la Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:

Gabava o “stemer “ que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais – todas francesas.

Assombrava-se muito da ligeira,
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso duma passageira...
Mil cousas mais de que não me recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo,
Em nota bene do melhor cursivo,
Recomendava o pobre do Veludo,
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento,
Me contemplava, e – creia que é verdade –
Vi, comovido, vi nesse momento,
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso,
Movendo a cauda – e adormeceu contente,
Farto d’um puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia,
Vi-me livre daquele companheiro,
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.

E respirei! “Graças a Deus! Já posso”
Dizia eu viver neste bom mundo,
Sem ter que dar diariamente um osso,
A um bicho vil, a um feio cão imundo.”

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda casa satisfeito,
E – de cansado – foi rolar dormindo,
Como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável,
Suportar esse hóspede inoportuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo,
Para livrar-me desse cão leproso,
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos,
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo – e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso
Como um cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.

Voltei a terra – entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão, profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei – oh, grande dor! – haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha –o unido.

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devorava tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah ! se Veludo

Duas vidas tivera – duas vidas
Eu arrancava àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri – abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés -, e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fora crível, oh Deus? – Ajoelhado
Junto do cão – estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o ! Estava morto.

Luiz Guimarães Filho
(1878/1940)


oklima
Enviado por oklima em 10/05/2011
Reeditado em 10/05/2011
Código do texto: T2961776
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