UM VELHO POEMA
Farei versos que me alimentem na velha idade,
na esperança de que a mesma lucidez de hoje
me faça passear pelas ruas das minha poesias,
como passeei pela minha cidade
na minha mais tenra mocidade infantil
em que eu não sonhava com um futuro
carregado de senescência na minha carne.
Farei dos meus versos poemas de ruas
com calçadas cheias de meninos e meninas
brincando na penumbra dos postes,
tangendo vaga-lumes;
com parques cheios de diversões
e músicas bregas oferecidas, no anonimato,
a uma bela moça de cabelos grandes e pretos;
com mães aflitas a recolherem seus filhos
para protegê-los do sereno das noites;
com pais voltando de seus trabalhos
e se aconchegando e se acomodando
à situação que antes era insustentável.
Farei poemas para que alguém leia para mim
e tenha recompensa pela troca de minhas fraldas
com dejetos amolecidos e mal-cheirosos,
e sinta que o presente é ilusório
se eles não fizerem poemas
para serem lidos por alguém
quando estiverem acalentando suas velhices.
Farei poemas de minha carne
para que a terra possa comê-la
e deixar o osso para ouvir a declamação
de algum visitante lendo o meu epitáfio.
Farei poemas enfim, para que no fim
a vida me lembre, e eu não morra
esquecido na masmorra do subsolo frio
sem imagem de mim que não seja fotografia.
Farei poemas para que lembrem
que minhas tripas também falaram.