Autobiografia

Éramos duas as filhas de minha mãe.

Entre elas ocupei sempre o pior lugar.

A mais nova – era linda, mimada.

Devia ser a primogênita, no entanto,

veio depois e ficou sendo a caçula.

Cresci, filha primogênita,

secundária à minha irmã.

Eu era triste, nervosa e feia.

Branca, de rosto empalamado.

De pernas moles, caindo à toa.

Os que assim me viam – diziam:

“- Essa menina é o retrato vivo

de um velho doente”.

Tinha medo das estórias

que ouvia, então, contar:

assombração, lobisomem, mula sem cabeça.

Almas penadas do outro mundo e do capeta.

Tinha as pernas moles

e os joelhos sempre machucados,

feridos, esfolados.

De tanto que caía.

Caía à toa.

Caía nos degraus.

Caía no lajedo do terreiro.

Chorava, importunava.

Caía à toa…

nos degraus da escada,

no lajeado do terreiro.

Chorava. Chamava. Reclamava.

E a moleirona, perna-mole

se levantava com seu próprio esforço.

Meus brinquedos…

Coquilhos de palmeira.

Bonecas de pano.

Caquinhos de louça.

Viagens infindáveis…

Meu mundo imaginário

mesclado à realidade.

Companhia indesejável – sempre pronta

a sair com minhas irmã e primos,

era de ver as arrelias

e as tramas que faziam

para saírem juntos

e me deixarem sozinha,

sempre em casa.

A rua… a rua!…

(Atração lúdica, anseio vivo da criança,

mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)

- proibida às meninas do meu tempo.

Rígidos preconceitos familiares,

normas abusivas de educação

- emparedavam.

A rua. A ponte. Gente que passava,

o rio mesmo, correndo debaixo da janela,

eu via por um vidro quebrado, da vidraça

empanada.

Na quietude sepulcral da casa,

era proibida, incomodava, a fala alta,

a risada franca, o grito espontâneo,

a turbulência ativa das crianças.

Contenção… motivação…Comportamento estreito,

limitando, estreitando exuberâncias,

pisando sensibilidades.

A gesta dentro de mim…

Um mundo heroico, sublimado,

superposto, insuspeitado,

misturado à realidade.

Intimidada, diminuída. Incompreendida.

Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.

Repreensões ferinas, humilhantes.

E o medo de falar…

E a certeza de estar sempre errando…

Aprender a ficar calada.

Menina abobada, ouvindo sem responder.

Daí, no fim da minha vida,

esta cinza que me cobre…

Este desejo obscuro, amargo, anárquico

de me esconder,

mudar o ser, não ser,

sumir, desaparecer,

e reaparecer

numa anônima criatura

sem compromisso de classe, de família.

Eu era triste, nervosa e feia.

Chorona.

Branca, de rosto empalamado,

de pernas moles, caindo à toa.

Melhor fora não ter nascido…

Feia, medrosa e triste.

Criada à moda antiga,

- ralhos e castigos.

Espezinhada, domada.

Que trabalho imenso dei à casa

para me torcer, retorcer,

medir e desmedir.

E me fazer tão outra,

diferente,

do que eu deveria ser.

Triste, nervosa e feia.

Branca, de rosto empalamado.

De pernas moles, caindo à toa.

Retrato vivo de um velho doente.

Indesejável entre os pirralhos.

- melhor fora não ter nascido.

E nunca realizei nada na vida.

Sempre a inferioridade me tolheu.

E foi assim, sem luta, que me acomodei

na mediocridade de meu destino.

Iacoe Michaela
Enviado por Iacoe Michaela em 04/08/2015
Reeditado em 04/08/2015
Código do texto: T5334162
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