Brincando no quintal de casa
Mauro Magalhães
 
     001-O lugar
O lugar em que nasci
Era o mais lindo do mundo.
Encostas verdes suaves;
Um córrego manso no fundo,

Correndo entre as capoeiras,
Contornando os espigões,
Entre serras e grotões...
Rolando nas corredeiras.

Perdendo-se atrás dos montes,

Caindo em algum buraco
Nas terras dos Virgilatos,
Onde ficava o horizonte.
          
002
Nesse recanto eu morava,
Brincando de sol a sol
Mas quase sempre sozinho.
Com sabugos do paiol
E as cangas de pauzinhos
Eu atrelava a “boiada”
No meu carrinho de bois:
—Uma lata enferrujada
De marmelada Colombo—
Atulhada com meus sonhos...
Ah! bom tempo que não foi!
          
003
Sob a sombra das “gueirobas”,
Com um caco de enxada
Eu fazia “rodovias”
E nelas eu empurrava
Toco liso de peroba
Que minha imaginação
Transformava em caminhão. 

Não tinha rodas, nem nada,
Mas fazia um barulhão!
E em sua carroceria
De palha de bananeira
Eu levava meus "porquinhos"
De goiaba e a alegria.
          
004
Do que eu gostava mesmo
Era brincar com Lilita,
—Um ano a mais do que eu.
Esperta como cabrita!
Cruzava de ponta a ponta,
Sem botar os pés no chão,
Os doze pés-de-goiaba
Plantados numa fileira,
Beirando o capim-cidreira
Ao longo do rego d’água
          
005
Já com seis anos saía,
Cabresto e espiga na mão,
Bem cedo pra campear
Cavalo pra carpideira.
Pegava o animal no pasto
Fazia-lhe um barbicacho
Ou somente focinheira.
Subia em algum cupim
e montava o bicho em pelo.
Senão agarrava as crinas,
Sem medo de coice ou tombo
E escalava as patas
Até alcançar o lombo.
     
006- A Escola
Com quase meus sete anos
Mandaram-me pra escola.
Distante uma meia légua
Córrego abaixo, mais ou menos.
Uniforme engomadinho!
Levava a pasta e um bornal,
Onde ficava a merenda:
Banana, bolo, biscoito...,
Uma fatia de queijo
Com um naco de rapadura.
Embrulhados num paninho.
     
007- A Escola- 1° Dia
Ir pra escola eu não queria!
Bati o pé, chorei, bufei,
Esperneei e dei birra!
Pois todo mundo dizia
Que a professora batia!
Colocava de joelhos
Sobre caroços de milho!
Em minha mente eu forjava
Imagens horripilantes
Para escapar da degola.
Tapas, varadas, castigo...
Tudo isso era empecilho
Pra eu me safar da escola.
          
008
Finalmente, convencido
Pelos “bondosos conselhos”
Que minha mãe me fazia,
(Com um chinelo na mão
E uma torção nos ouvidos)
,
Lá fui eu, a contragosto!
Pasta de couro na mão
(herança de meu irmão),
Lápis, caderno, e régua,
Para a primeira refrega.
          
009
Depois eu fui pra cidade
Para aumentar os estudos.
Morei no porão das casas
De amigos de meu pai.
Doutor Anísio e Jorgeta.
Dona Olímpia, Zama Alves...
E mais uma infinidade
De pessoas, que para mim
Fizeram a diferença.
Honradez, dignidade...
Coisas que eu nem sonhava...
Não era por caridade!
E meu pai sempre dizia
Pra estudar tudo valia.
     
010- As Férias
Quando de férias eu vinha,
Descia na rodovia
E pegava a estradinha
Em meio à mata fechada;
Morro abaixo — pouca coisa!
—Meia légua mais ou menos.
Via à direita as mangueiras
Lá embaixo, o cafezal.
O roçado, as bananeiras...
Passava junto à paineira
Que “ajudei" meu pai plantar.
          
011
Mais à frente uma porteira,
Saudava-me rangedeira
Quando eu passava por ela.
E havia um pé de canela;
Logo depois da porteira
—Não de canela cheirosa—
Um pé de canela preta;
Resina escura e viscosa
A lhe escorrer pelas gretas.
Junto a ela um pé de ipê.
Ipê de flor amarela
Que em setembro floria.
Formavam um corredor
Até a boca do mato.
          
012
Formava essa nova estrada
Um corredor mais estreito,
Que tinha ao lado direito
A mata escura e cerrada.
Barranco alto e escarpado,
Fechava do outro lado
E na curva do caminho
Uma grossa gameleira
Enleada de cipó.
          
013
Era um lugar de dar medo!
Pois diziam os mais antigos,
Que ali tinha assombração!
E pra fugir do perigo,
Quando passava sozinho,
Nas canelas punha sebo!
Parece que o coração,
O pulmão, o buxo e o fato
Iam sair pela boca!
Ficava curto o caminho,
Coberto num fôlego só,
Até a saída do mato.
          
014
Enfim descia a ladeira
Margeando o mato denso
Até avistar o “vale”.
Inda hoje, quando penso
Na visão de nossa casa
Sinto no corpo um arrepio.
Nossa casa na ladeira!
Mais ao fundo a capoeira
Seguindo com o ribeirão...
Lá longe a casa da Dinha!
Aqui a casa da escola
Com o campo de jogar bola.
O pé de aroeirinha...
O morro do Tio Zé Grosso!
O pé de angico roxo
Com abelha jataí
Que nunca sai de seu oco.
          
015
Dois pés, fininhos, de coco;
Daquele coco amarelo,
Polpa cremosa, docinho...!
Abelhas e maritacas,
Assanhaços, periquitos,
Numa festa de dar gosto,
Riam de mim, lá em baixo,
Que não podia subir.
E como se não bastasse,
Em meio àquela fuzarca,
Atiravam no meu rosto
As sobras presas nos bicos.
          
016
Podia, mas não subia!
Pois Dona Sebastiana
Me arrancava as orelhas
Se a minha calça puía.
Mas não ficava assim não!
Pegava uns cacos de telha,
Uma pedra, algum torrão,
E acabava com a festa.
Ficavam em cima as abelhas;
Eu e os cocos no chão.
          
017
Lá no fundo do quintal,
Sob as moitas de bambu;
No meio das bananeiras;
Abaixo do laranjal,
Eu armava as arapucas
Para pegar juritis
Ou até algum nhambu.
          
018
De manhã as saracuras
—As três-potes sorrateiras—
Faziam grande berreiro
Com as sobras do chiqueiro.
Eu saia agachadinho,
Pegava um caco de telha
E chegava de mansinho
Junto à cerca... E num repente,
Sem que as visse e vissem a gente,
Uma pedrada rasteira
Descia ao pé da ladeira
De onde o canto saía.
          
019
Quase nunca eu acertava!
Eram espertas demais!
Por isso eu também armava
Na beira do rego d’água,
Nas margens do ribeirão,
Onde elas ficavam mais;
Uns laços de verga forte
E barbante corrediço,
Que eu mesmo fabricava
Torcendo fios de linha.
—Linha boa de algodão
(novelos de minha mãe),
que ficavam num magote
no fundo de um baú.
          
020
Passava a mão num caniço,
Arrancava umas minhocas,
Botava num cornimboque
E saía pra pescar.
Na cabeça o meu “paiada”
Para espantar muriçoca;
Num bolso, meu canivete.
O outro cheio de pedras
Para atirar com o bodoque.
          
021
Começava ali nos fundos
Sob as moitas de bambu.
Às vezes córrego abaixo
Até o pasto do campestre.
Ou o açude da Tia Rita;
Às vezes córrego acima
Até o rêgo dos Anteros.
Sem passar nunca os limites
Das terras do meu avô.
022
E como tive bom mestre
Trazia sempre algum peixe:
Piabas e sete-léguas,
Bagre, mandi perigoso...
E na enchente o cascudo.
levava tudo num gancho
de assa-peixe ou leiteiro.
          
023
Quando a gente ia pra Dinha
Ficava o dia por lá.
Era tão bom que esquecia
De para casa voltar
Inda com o clarão do dia.
Ai a noite chegava...
E então a gente enrolava
Torcendo pra não ouvir
A nossa mãe que chamava.
          
024
Mas ela não esquecia!
Parece até que esperava
A escuridão que baixava
Nas grotas do Mataburro,
Para então requisitar
O retorno de suas crias.
          
025
E a gente então saía
Cantarolando uma modinha
Pra espantar os “esturros”
Dos bichos da capoeira.
As criaturas da noite
Que habitavam o lugar
          
026
Quando eu estava sozinho,
Antes de passar o arame
E entrar na capoeira,
Parava ali no morrinho.
Enchia os bolsos de pedra,
Levava algumas nas mãos.
Parava então de cantar!
Começava assobiar!
—Não me pergunte “pra quê”! —
Talvez pra entoar com os sapos!
Que havia em profusão.

          
027
Esse era o pior trecho,
Ao fazer a travessia:
Do brejo até a pinguela.
Além de ser alagado
Os troncos nele atirados
De comprido dentro d’água
Não nos dava garantia.
Por ali passavam os porcos
Que chafurdavam na lama
E a nossa “passarela”
Ficava escorregadia.
Melhor é passar correndo!
Mas isso durante o dia!
Imagina então à noite!
          
028
Na entrada da pinguela
Cheiro de chifre queimado.
Diziam que era o diabo
Que ali tinha passado.
Voltar pro barro? Capaz!
Oito metros de pinguela
E mais cem de capinzal,
Não é chão pra quem está
Com o diabo logo atrás.

          
029
Era um "tirim-de-ispingarda"
Até a cerca de arame!
E quando eu lá chegava,
Atirava-me no chão,
Rolava pro outro lado
E começava o vexame.
Tirava as pedras do bolso.

Reiniciava a canção.
        
 030
Em casa, toda a galera
sabia bem direitinho,
qual a parte do caminho
por onde o medroso andava.
Ficava-se na espera,
observando da escada,
A chegada triunfal,
Na maior cara de pau.


A quem chegou até aqui, agradeço a paciência.
Há muita coisa a contar, mas que interessa a  poucos. Quem não viveu esse tempo, reviver é muito fácil! 
É só sentar numa sombra, na encosta abaixo do Mato e ir abrindo os paineis. Talvez me veja correndo com uma vaca no encalço; caçando "nim de galinha" talvez me veja pescando ou mesmo encarapitado sobre um galho de "angá". Ah! Nem! Chega! Isso não acaba nunca!
MAURO PEREIRA
Enviado por MAURO PEREIRA em 07/02/2020
Reeditado em 30/03/2021
Código do texto: T6860729
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