APENAS SOMBRAS ENTRE NÓS
Deixa que me dispa do tempo que me pertence
para que possa ver-te integral junto de mim
naquele aconchego próprio de quem aspira
ao renascer do indelével amor que partilhámos.
Tu foste para mim a Euridice de um velho sonho
numa história que ingenuamente começou
e os dias, as noites e as horas que recontei
construíram aquela única e admirável aventura.
Eu fui para ti, sim, aquele Orfeu intemporal
que na sua insignificância romanesca
julgou ser possível alcançar a donzela
longínqua que habitava para lá do mar.
Muitos foram os sonhos embalados
num berço mágico de humana ambição
mas rude foi o destino que projectou
contra mim os mais cruéis escolhos.
Perdi-me nas veredas sombrias do teu horizonte
sem conseguir verdadeiramente encontrar-te
e hoje apenas vejo as marcas insondáveis
dos orfeus menores que sempre te cortejaram.
Do amor que em nós um dia se esboçou,
virtualmente crescido entre cardos inúteis,
onde está, podes dizer-me, o cerne da alma
que me poderá fazer regressar ao caminho?
E tu, Euridice, que revolveste minha estória
com a linha mágica do teu corpo e ilusão,
que resposta me darás quando ao acordar
eu encarar novamente o fúlgido labirinto?
O tempo e o mar são os intoleráveis inimigos
que entre nós selvaticamente se plantaram
e, por mais clara e solarenga que seja a aurora,
manter-se-ão as indesejáveis neblinas.
Não sei se a nossa história se reencontrou
e se o sentimento que lançaste fora de ti
ainda é o mesmo do nosso tempo original...
Diz-me, Euridice, Orfeu poderá voltar ?
Frassino Machado
In AS JANELAS DA ALMA