Insatisfeitos

Insatisfeitos

A educação ficou esquecida

Algures perdida

Num guarda-fatos arcaico da memória adormecida

Arrumado o catecismo e a consciência da Pátria diluída

Nas encíclicas reprimendas civilizacionais

Impostas pelo sabor amargo dos tabus.

Avoluma-se a noção dos bens

Tudo querer para nada ter

Escaladas e assaltos às muralhas do ser

Que de tanto assediadas vão acabando por ceder

Arrastando-se as pedras soltas

Pelos convulsos aluviões do cepticismo,

Vales nus,

Fósseis polidos pela fricção dos diamantes lapidados

Cristalizados na louca avidez de domar o impossível

Donos das imprecisões temporais

Embutidas nos sinos que redobram

No torreão do relógio imprevisível.

Insatisfeitos! Por demais insatisfeitos!

Mordendo a carne dos figos secos

(Ópios afrodisíacos)

Aliviantes das imposições acres

Que regem as conjunturas comportamentais.

Enganados! Desconfortavelmente enganados!

Acomodados às inverdades consentidas

Nas assembleias magnas do interior contraditório

Atilas traídos durante o repouso

Sufocados nos braços da lascívia

Por uma realidade aterradora desesperadamente fria

Como gélido é o despertar da consciência matutina

Acossada pelos ponteiros que avançando implacáveis

Castram a fantasiada vida bela

Sonhada na quimérica alvorada

De termos nascido para o mundo

Condenados à obrigação de sermos felizes.

Como tudo isto soa a falso!

Como tudo isto causa medo!

O sistema solar inseminado

Pariu um globo inchado, mongolóide, pesado

Girando no côncavo duma pequena mão

Trémula

Contraída

Suja de culpa

A pele crispada pela bitola da irresponsabilidade escalonada

As divindades arredando-se da tragicomédia que presenciam

Prestes ao clímax do desenlace final

Num acto cobarde de glória destruidora.

Enquanto um vigário prepotente em pose obscena

Anuncia uma catequese apocalíptica

O vício e o servilismo exaltados como pares

As sandálias do pescador que nunca o quis ser,

E ainda menos ser um mito,

Encontraram desprezadas nas redes recolhidas

As guelras asfixiadas da populaça crente

Delirando pela vinda de uma imbecil providência.

Tudo é alvi-negro em volta da verdade

Mais vale ser avestruz e esconder a cabeça na areia

Em vez de enfiar o capuz

Um capuz espesso, sem rasgos nem aberturas

Onde as trevas são mais densas

E a esperança, se é que há alguma,

Definha arrastada na lama dos insultos.

Percam as ilusões e tirem as vendas

Vereis então que a terra prometida

Não passa de uma pequena campa

Onde os vermes daltónicos e míopes

Desrespeitam os semáforos

Tudo lhes serve para mordiscar o eu

A carne putrefacta desfazer-se-há na geleira da cova

Um dia o congelador naturalmente desintegrar-se-há

Se antes não se derreter abafado numa estufa artificial

Mas a massa espiritual que tudo molda perdurará

Num ontem feito presente do amanhã

E imortalizando a elevação, perdoando, vingar-se-há.

Moisés Salgado