Ode

Não faço verso dos casos, nem sinto encanto diante da concepção nem da morte. Vejo a vida como uma estrela imóvel perante esse encanto, que não acende nem clarifica. Digo não aos acidentes subjetivos, as agnações, as datas comemorativas. Não invento encanto para o corpo, tão infesto ao derramamento poético delirante, findo e cômodo corpo. Não ligo para a careta de deleite ou de amargura nas trevas, teus pingos de biles são apáticos. Procuro não expor minhas emoções, que se aventura à longa viagem prevalecendo-se do erro. Não uso o pensamento como inspiração. Não canto minha cidade, procuro não incomodá-la. Não vejo a canção como a animação das complexidades nem como mistério dos edifícios. Não aprecio melodia de começo, toada do oceano nas alamedas junto ao limite de espuma. Porque a serenata não se parece com a natureza nem com os seres humanos em coletividade. Acredito que o crepúsculo, o azáfama e a expectativa nada dizem para eles, procuro não transformar as coisas em poesia, suprimo sujeito, objetos diretos e indiretos.

Não faço juras, não enterneço, não pergunto. Não perco tempo faltando com a verdade. Não fico amargurado. Tua embarcação feita de marfim, teu calçado de brilhante, vossas canções e superstições, vossos arcabouços de genealogia apagam-se no adunco da estação, nada vale. Não retoco minha enterrada e triste meninice. Não me agito entre o cristal e a lembrança. Que se prodigalizou, não era encanto. Que se confinou, não era espelho.

Procuro entrar silenciosamente no reino das expressões, onde se encontram as composições a serem escritas, paralisadas, porém sem desespero, nelas persiste a tranqüilidade e o frescor na superfície incólume. Vou lendo-as sozinho em silêncio na forma do Grande Aurélio. Com minhas poesias convivo, antes de escrevê-las. Perdura em mim a paciência caso me seja herméticas. Frieza, caso venham me impacientar. Deixo que cada qual se cumpre e se esgota com seu poder verbal e seu poder de concentração. Faço com que a poesia se deduz do rebordo. Não cato no solo a poesia que se submergiu. Não adulo a poesia. Acolho-a na sua forma, assim como ela acolherá seu formato definido e reunido no ambiente.

É preciso achegar-se para as palavras contemplar. Cada qual possui faces ocultas sob o semblante imparcial. Tudo me indaga, sem demonstrar empenho pela réplica, despojada ou admirável, que lhe produz: cadê o acionador? E observa que são desertas de harmonia e apreciação, refugiam-se no crepúsculo, orvalhadas e carregadas de letargia, jorram dum mar complexo e se transnformam em descaso.

R J Cardoso
Enviado por R J Cardoso em 22/11/2006
Reeditado em 23/11/2006
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