Gritos

Os gritos cortam minha carne como a navalha de um velho barbeiro apaixonado pelo oficio, dissipam meu corpo numa quantidade infinita de fragmentos poéticos que se dissolvem numa embriaguez insólita e confortável.

Grito, grito mais alto até que o animal mais distante se revele numa corrida sem norte e só a relva molhada no frescor da manhã sente o calcar dos cascos cortantes da gazela cinzenta.

De repente! Tudo se acalma! Como uma mágica idiota para um menino idiota e gordo que balança a pança flácida num riso esfomeado e sórdido, Ra! Ra! Ra! Explodiu na minha cara, Ra! Ra! Ra! Explodiu na minha cara a barriga! O fedor da mistura desesperada. Calma! Foi um parto, o menino pariu a solidão a dor o desafeto e o rancor, suas lágrimas corroem minha pele como chuva ácida e então me escapa da boca virulenta os mais nobres palavrões, tão doces como os sonhos do menino gordo nas ancas da gazela magra.

Então ela corre com violência e me salta pela boca com olhos esbugalhados e infames, me subtrai o grito uniforme da insanidade viril, me faz rastejar por entre espinhos dolorosos, conduz meu corpo por entre flores mortas até os limites metafísicos da insônia, me consomem em labaredas ardentes, estúpidas labaredas! Meu corpo inflamável, abrigo dos desejos escondidos que me condenam a cada gesto, no contato amistoso da língua venenosa com o sangue fresco, a carne da boca me alimenta de uma convulsão neural e os gritos! Os gritos e os ganidos se confundem com ladainhas, rezas e a incerteza de estar vivo na manhã seguinte.

Sidi Leite.

Sidi Leite
Enviado por Sidi Leite em 24/02/2007
Código do texto: T391368
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.