AUTOFAGIA


No altar de sacrifício
no porão do inconsciente
desprendo-me do outro eu
a quem ofereço meu corpo imolado
em holocausto
resgate de um castigo maior
ministrado indefinidamente
pela vigília do consciente.

Uma vez de mim separado
faze tudo que te ordeno
e assim feito estarei a salvo
gozando de paz duradoura.

Primeiro arranca-me os olhos
e engole-os por inteiros
para que te possas ver o interior
e conhecer tua verdade obscura;
depois morde-me na carótida
e deixa-me esvair em sangue
que sorves até a última gota
para fortalecer a tua vontade.

Agora esfola-me a pele
cuidadosa, porém firmemente
faze com ela um agasalho
que te proteja para sempre
da procela que é a vida.

Depois tira-me as vísceras
devora-me todo
meu cérebro, meu fígado, meu sexo
mastiga-me devagar
deglute-me com parcimonia
para que a indigestão
não te tragas pesadelo.

Nada pode ser esquecido...
o coração, ah o coração devora-me palpitando
para que te cure a cardiopatia
e dê ritmo à luta por sua crença;
o trato digestivo
consome-o com precaução
livre dos ácidos, das úlceras e do quilo
para que te faça puro em teus desígnios;
os ossos também aproveita-os
moídos, autoclavados
porém sem perder o tutano
que te dará a resistência
de um gladiador vermelho.

Uma vez de todo consumido
Estarei em ti novamente
Reciclado, depurado e exorcizado...
Aí então destruirei os teus censores
E seremos uma nova cepa
soma e germe em equilíbrio
libertados para sempre.

Brasília, 1981