O Escriba

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Numa penumbra existencial

um escriba constitui-se

arguido incondicional

na clamorosa delinquência

da transcrição destes versos

e confessa que terá sofrido

repetida e violentamente

a função inspiradora

de um ente inimputável;

Uma brisa, que fosse,

uma nuvem, um esporo,

um grão de poeira,

e assim mesmo, algo

fidedigno e consciente,

a pairar nas alturas

mas nada que se lugarise

ou se marque em cruz

no plano raso dos mapas.

Inquirido mui competentemente

o delinquente aponta para si

com o mesmo rigor

de tudo o mais vago que fica

algures nos céus,

possivelmente junto ao zénite

talvez de Hiroshima ou Beirute,

de Haushwitz, Kabul...

Algures, sim, e imponderável

até sobre povos e terras

que ainda não têm nome

ou já o perderam...

algures na memória do tempo

e na consciência dos homens.

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Escriba ou arauto, dirá de si,

pelo poema novo...

e mais grave ainda,

assume-se profeta

de algum mote sagrado

como de um gesto de amor

que emana do horizonte.

Arauto, escriba,

pantomineiro sem guarita,

entrega-se ao jogo de espremer

o pigmento lúgubre da letra

e esta da palavra;

ele respinga da retórica

de todas as almas irmãs

ora um vocativo

ora, inteira, uma oração.

Afoita-se a criatura,

furtiva e alucinada,

até à ideia estremecida

que transcende a poesia...

até ao centro de gravidade

do mais absoluto equívoco.

Pois que se mesmo assim

não se desvenda

a matriz de um tal absurdo,

também não se vislumbram

quaisquer das margens

do desengano.

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É bem possível

que um final se escreva

para o poema

como para o seu escriba

com a mesma imprecisão

de uma tal zona

entre um certo narcisismo

e um ciúme reflexivo.

A que propósito?

E ele responde:

“Ora valhó Deus!,

a propósito da poesia,

por exclusão de partes

como pela utopia

de outros sentidos

além desse que se desprende

pelo vómito de sempre...

o de toda a mágoa

que a vida faz engolir”.

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Legitima-se assim

uma certa conjura

pela rigorosa inocência

da conjura certa

e tão ao fundo e no âmago

de cada folha de papel;

expurga-se o delito

de um acervo de versos;

faz-se por acreditar

sempre ao correr da pena

que um dia incógnito

há-de chegar

com o pleno estatuto

de tudo o que é de hoje

e a possibilidade real

de alguém queimar

folhas de zimbro

também pelo jogral obreiro

de todas as quimeras.

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__________________LuMe

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Luis Melo
Enviado por Luis Melo em 09/05/2018
Código do texto: T6331748
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