Dona Cota, a fofoqueira da rua

Foi ela quem espalhou,

que seu sobrinho, mulatinho que nem feijão,

foi aprovado para a faculdade,

na cara e na coragem,

sem depender de favor de ninguém.

Pode até estar certa, a dona Cota,

dado o ângulo de visão de cada um.

Sabedoria popular.

Mas sempre haverá a má intenção,

por parte daqueles que atravessaram o deserto,

e impunes,

que não aprovarão alterações nas regras,

para quem ainda vai tentar.

A quem agradar?

Visto que,

o sistema ao qual se referiu dona Cota,

interferirá diretamente sobre quem não tem nada a ver com isso,

estaremos acrescentando mais ingredientes,

tais o já apimentado preconceito,

num caldeirão já cheio de abobrinhas.

Imagine, se para entrar no céu,

houvesse uma passagem, mesmo que limitada,

somente para as almas mais injustiçadas?

Isso não feriria o princípio da igualdade,

daquele espaço criado por seu Idealizador,

ao qual nos habituamos a chamar de paraíso,

onde todos são iguais perante a Sua lei?

Alguém alterou isso

e não foi Ele, nem você

e nem eu.

Por mais que os negros tenham sofrido,

tal barbaridade nunca foi considerado como holocausto,

uma dessas palavrinhas estranhas que inventamos,

para definir comportamentos bizarros,

assim como esquizofrenia,

que revela os aspectos mais horrendos,

daquilo que sempre denominamos de loucura,

até que ela se tornasse habitual.

Nós sempre inovamos

e com isso pouco evoluímos.

Mas vamos começar a tentar reparar.

Vamos começar a reparar isso, dona Cota,

Incluindo todas as mulheres, assim como a senhora,

pelo país afora e depois pelo mundo,

compensando o tempo que elas demoraram,

para serem consideradas cidadãs

e consequentemente pudessem votar.

Construir mais escolas nas comunidades genuinamente negras,

mas nunca nos esquecendo também dos outros tantos carentes,

senão isso virará uma outra reparação,

mais adiante, lá na frente, no futuro,

aonde não conseguimos enxergar

ou então passar a exigir mais,

de quem se propôs a fazer e não fez.

E não faz.

Garantir ao povo judaico,

o livre acesso para onde quiser ir,

sem custos e nem sustos,

uma vez que ele já pagou mais do que tinha.

E devia.

O tal direito de ir e vir,

uma garantia da hipocrisia,

haja vista que ninguém de fato tem.

Também exigir reparação.

Devolver ao povo indígena,

tudo o que usurpamos dele,

desde que ele ainda aceite,

do jeito em que transformamos os seus rios,

os seus filhos, seus herdeiros, suas florestas,

sem exigir uma maior reparação,

assim como uma boa quantia em dinheiro,

sob o pretexto legal de danos morais,

previsto na legislação branca.

Um perdão poderia bastar, dona Cota,

mas num daqueles apelos conscientes

e tentar não errar novamente,

pois a natureza só nos dá direito a dois dentes

ou dentições,

porque nossa sina é morder

e depois morder novamente.

Alguém proferiu o Perdão Universal

e foi muito contundente, Sua Santidade,

mas a bem da verdade, só teme o sal,

quem é -ou é propenso a ser,

mais um paciente de hipertensão.

Perdão,

mas essa é apenas mais uma opinião,

com todo o respeito a qualquer outra interpretação,

senão isso pode gerar,

um outro tipo de reparação.

O índio não deve querer

ser comparado ao cara pálida.

Quer ser simplesmente respeitado como é.

Não creio que o negro

Queira se passar por branco.

Quer simplesmente sentar-se no mesmo banco,

frequentar os mesmos cantos, ir ao mesmo branco,

ser sentir-se privilegiado e nem ser considerado

especial.

Quem é especial é diferenciado,

de uma forma boa ou ruim.

Basta ser igual.

No elevador social, o negro não entrou.

E se magoou.

No mesmo elevador,

um cadeirante recusou ser ajudado,

porque queria se sentir autossuficiente.

Ser diferente nem sempre nos é suficiente.

Não precisamos inventar mais nada,

porque viver a vida já inventou

e acima de tudo lembrar,

que respeito é a palavra-chave,

assim como a-ba-ca-da-bra dos contos

e eu dou um ponto,

para quem conseguir resgata-lo.

Ah, sim,

mas antes vamos resgatar o bandido

e o mendigo também,

igualmente vítimas do sistema,

sem nunca nos esquecermos,

que o sistema somos todos nós.

Dona Cota falou até do seu Querêncio,

um vizinho muito querido.

Também de uma amiga sua,

naquela mesma rua,

cuja fama não era muito boa,

numa total demonstração de falta de amor,

até que a morte a calou.

Está vendo:

nós não precisamos inventar

mais nada.

A madrugada é alva,

mas vem de uma noite,

que é pura escuridão.