CO'AS PRÓPRIAS PALAVRAS

CO'AS PRÓPRIAS PALAVRAS

Inopinadamente, ele escreve:

E eu, que de tanto amar-te já nem sei,

Se isto é mesmo amor ou se é loucura

Amar-te foi seguir na noite escura

Os sonhos que acordado te sonhei...

Depois, pensando melhor, metralha sobre o impasse:

-- "Ai de quem abandona ainda nos quartetos

O soneto não-nomeado de sua vida

E faz supor que cala por que tinha muito a dizer..."

-- "Ai de quem escreve para ser lido...

Antes escrevesse para se ler!

Para, co'as próprias palavras (próprias, mas furtadas do idioma...) dar voz a desatinos inconfessáveis.

-- "Ai de quem assume um discurso reticente, entre

meias-palavras e meias verdades!"

(Céus... Ai d'ele! D'este mentecapto!

Que põe no palco da poesia

Fantasias que não fazem sonhar;

Piadas que não fazem rir;

Fábulas que não fazem pensar.

Em suma, entreter, entreter e entreter!)

Mísero entre miseráveis quem se jacta POETA!

E, à espera de aplausos, escuta vaias:

-- "Admirável público! Esta noite um pateta (digo, poeta...) vem vos arrancar bocejos e indiferença! Recebei esse parvo que vos convida a experimentar o sabor de palavras insossas e o saber de verdades herméticas. Arte pela arte!"

Ele está lá na berlinda -- de pé e só, como um comediante --

Tem um olhar febril que se perde no infinito.

É jovem, mas parece velho... Parece não dormir há dias!

No mais, é um tipo comum, tímido até. Escutemo-lo:

-- " Todo escritor parece condenado a reescrever quanto leu co'as próprias palavras. Não, caríssimos, nada tenho que seja absolutamente novo para vos apresentar. Tudo está escrito. Tudo já foi dito."

E calou-se. Os presentes começaram a se impacientar com seu silêncio e lhe exigiam: -- "Declama para nós!" -- mas ele nada respondia. Em pé, olhando para a escuridão do público, viu quando os mais inquietos começaram a se levantar e sair do teatro. Logo, havia burburinho e apupos. Houve quem apelasse: --" Quero o dinheiro de volta!" -- mas lhe lembraram que ninguém pagou nada por aquilo. Ele insistiu -- "Quero meu tempo de volta!" -- e, impacientes tanto com o poeta quanto com o revoltado, ninguém mais lhe deu ouvidos.

Todos saíram do teatro, mas o poeta permaneceu no palco, agora totalmente sozinho, iluminado no proscênio d'um palco sem cenário. Enfim, minutos após saísse o último expectador, ele começou a declamar, de si para si, aquele seu poema:

E eu, que de tanto amar-te já nem sei,

Se isto é mesmo amor ou se é loucura

Amar-te foi seguir na noite escura

Os sonhos que acordado te sonhei...

E assim, co'as próprias palavras" seu eu-lírico se expressou a um tu-poético aparentemente platônico.

Betim - 02 01 2019

P.S.: Deviam haver mais dez versos, mas os falou tão baixinho que nem ele mesmo escutou.