Rua Netuno

Os carros piscam os olhos e passam,

A noite cai feito pluma. Leve, leve, leve

O portal da noite está à esquerda da rua transversal ao museu

A cruz ficou no Parque das Emmas.

Os pássaros da noite voam na música que se ouve do outro lado da rua,

Uma moça canta:

“ A cada dia ando mais por nuvens / a cada dia desfolho-me como árvores antigas / julhos, agostos, setembros, outubros (...) passam-se a cada dia por mim” ...

Meses sobre a cabeça pesando como pedras, mas ela canta

E passeia pelas calçadas da Rua Netuno

Não chora, apenas canta

Quantos versos à musicar

E levantam-se as asas dos anjos em coro

E ela canta mais alto ao vê-los como pássaros, simples pássaros

Cante também a canção que toca do outro lado da rua agora,

Não escreva as partituras nos muros simplesmente,

Não olhe pra moça que canta, dê a ela uma canção completa, plena, harmoniosa.

Corina Sátiro – maio/2018

INTERAÇÃO Miguel Carqueija

Muito tempo atrás eu morava nas proximidades da Rua Netuno. Cresci ouvindo estranhas histórias sobre a moça que cantava e que passeava naquela rua sombria e estreita, por onde não passavam carros. Era uma rua sem crianças e que às vezes parecia ser uma rua sem moradores, de tal forma costumava ser silenciosa e vazia.

Curiosamente nem os garotos que jogavam bola iam lá, apesar de ser um lugar onde se poderiam disputar peladas sem risco de atropelamento. Assim eu também não ia lá, e minha mãe achava que era melhor não ir, mas não explicava porque.

Nos meus nove anos eu era muito curioso e de vez em quando arriscava passar lá, mas nunca avistara a moça. E também não avistava pássaros, mas dizem que eles apareciam à noite. Como a moça.

Foi sem dúvida por Natália que eu acabei indo lá após a hora proibida... quando ela, que ainda pouco me conhecia, esbarrou comigo na Rua Valadares, e perguntou se eu avistara o seu cachorro Malhado, um fox paulistinha. Eu já a vira passeando com ele e fizera festa no bichinho que, como os de sua raça, era bastante amável. Ela estava tão aflita, uma menina de nove anos, magra e alta, de blusa quadriculada e calças jeans, que eu resolvi tentar ajudá-la. Contou-me que o cão se assustara com uma batida de carro e se desprendera da coleira, que aparentemente fôra mal fechada.

— E como é que eu vou voltar e contar a mamãe o que aconteceu? Que satisfação eu vou dar, com o Malhado sumido?

Crianças podem não ter libido, mas por experiência própria sei que um menino pode sentir por uma menina, uma deferência que ele não teria com outros meninos. Eu me ofereci para ajudá-la, sem pensar muito no que estava fazendo; Natália era minha colega de classe mas entre tantas crianças eu nunca tivera com ela muita relação.

— Você quer realmente me ajudar? — ela pareceu encantada com meu oferecimento e eu fiquei encantado por vê-la encantada, então sáimos os dois andando e procurando o cachorro que eu já tão bem conhecia.

Atravessamos o Parque das Emas, onde de repente Malhado poderia estar perambulando e tentando encontrar o caminho pelo faro. Avistamos diversos cachorros, mas não ele. Aí, quase intistivamente, atravessamos o chamado Portão da Noite, logo depois do museu qe vivia fechado e misterioso...

E foi assim que nos aproximamos sem perceber da vedada Rua Netuno e de repente parecemos avistar o bichinho, ainda a distância, dobrando uma esquina...

— Corre, Rui! — disse ela, aí demos as mãos sem nem perceber direito o que fazíamos e corremos, pois o cachorro já tinha sumido na esquina. Nós entramos na Rua Netuno sem notar de imediato, nem olhamos a placa. Ruas estreitas e sem trânsito havia várias por perto.

Anoitecia, mas ali parecia mais escuro que nas ruas por onde transitáramos. O cachorrinho estava ainda a certa distância, e se aproximava de uma mulher que caminhava sozinha por ali. Nós dois, após o avistarmos, voltamos a correr em sua direção, mas nesse ponto escutamos a cançao:

“ A cada dia ando mais por nuvens / a cada dia desfolho-me como árvores antigas / julhos, agostos, setembros, outubros / com flores e folhas amigas / inspirando-me cantigas/ passam-se a cada dia por mim” ...

— É ela... a moça misteriosa... — murmurou minha amiga.

— Nós temos de fugir, ninguém fala com ela...

— Não podemos fazer isso! O Malhado chegou junto dela! Meu Deus...

A moça se abaixara e agora fazia afagos no cachorrinho, que demonstrava por ela verdadeira efusão de festas.

— Ele está mais animado que de costume... o que ele viu nela?

Tomamos coragem e nos aproximamos. Mesmo que fosse um fantasma, não podíamos abandonar o cachorro com ela.

— Vocês são os donos desse cachorrinho? — ela perguntou, já com Malhado em seus braços.

— Sou eu... – balbuciou Natália. — Ele está comigo... — completou, me indicando.

Acho que eu estava com mais medo que ela, e murmurei um “boa noite” com dificuldade. Ela perguntou nossos nomes e do cão. Eu disse o meu a contragosto, Natália identificou-se com mais desenvoltura.

— E você quem é? — perguntou por sua vez.

— Ah, eu sou a Estela. É tão raro falarem comigo...

Como nada disséssemos e eu, estarrecido, já começasse a achar que a garota era transparente, Estela pôs o Malhado no chão, deu-lhe um último afago e murmurou:

— Me façam um favor: mandem celebrar missas pela minha alma. Durante um mês, está bem?

— Sim — disse eu, creio que gaguejando.

— É claro — acrescentou Natália.

— Eu tenho que ir agora. Fico muito grata a vocês.

E desapareceu diante dos nossos olhos. Malhado choramingou um pouco, mas parecia saber a verdade antes mesmo de nós.

Felizmente minha mãe foi compreensiva, o que poucos adultos seriam. Natália não quis falar com os seus pais, gente pouco religiosa. Mamãe concordou em mandar celebrar as trinta missas, ou melhor, como hoje eu já entendo, colocar aquele nome nas intenções das missas do mês da paróquia.

— É claro que se trata de uma alma do purgatório à espera de sufrágios... se eu pudesse investigar talvez até achasse a origem dessa moça, mas isso não importa. Eu mesma já a vi de longe, faz muito tempo... Vamos fazer o que ela pediu.

Algum tempo depois dessas missas aquela alma deixou de aparecer na Rua Netuno. Deve ter ido para o Céu. Até hoje Natália faz essa mesma observação...

28/5/2018

Corina Sátiro
Enviado por Corina Sátiro em 27/03/2024
Código do texto: T8028894
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