O Medo

I

Naquele tempo eu era menino

Mas aquelas coisas não esqueço

Elas me dilaceraram e povoam

Agora a solidão de meu ser

Eu tinha muitas tarefas

Coisas que eu não devia fazer,

Mas caí em miseráveis mãos

Que levaram a vontade de viver

Mas isso fica pra outra hora

Isso não é digno de lembrança

Mesmo que nos venha sempre

A nos subtrair a confiança

Num de meus muitos afazeres

Eu era obrigado a trilhar

Por estradas abandonadas

Cheias de almas arruinadas

E um dia eu fui apertado

Entre tempo e a distância

E fui por um caminho que

Gerava muita desconfiança

Mas antes hesitando pensei,

Não devo ir por ali, não devo...

Está ermo, é muito escuro...

E segue o muro do cemitério...

Não devo ir por ali, não devo...

E eu decidir não ir, não ia...

Mas assim ia demorar demais

Pra voltar e fazer outra viagem

Porque aquelas pessoas malígnas

Que disseram outro dia me amar

Faziam com que trabalhasse e

Como salário vinham me xingar

Mas nessa época não percebia

E estava lá ante a árdua decisão,

Ir pelo caminho dos mortos

Ou ser vítima de uma xingação

Temia os que diziam de mim cuidar

E tentava fazer o melhor que podia

Temia a carranca de seu Raimundo

Via a raiva dele até quando dormia

E a mulher dele, uma fera,

Que sumiu da minha mente,

Achava-me tantos defeitos que

Até hoje meu coração sente

Mas eu não me decidia

Estava olhando o caminho

Cuja entrada pedregosa

Parecia querer me tragar

Eu olhava demorado para ele

Olhava também lá para o alto

E a escuridão não deixava

Se mostrarem os entes que

Pareciam querer me encontrar

E eu olhava, mas não via...

Certificava-me que nada havia

E assim eu me convencia

Até que procurei o caminho

Naquela miserável madrugada

E pisando muito desconfiado

Eu fui seguindo pelo atalho

Subindo rente ao longo muro

Que guardava os entes funerais

E o caminho era denso e úmido

Como uma caverna de morcegos

A pregar os olhos no entrante

Que desconfiado vem seguindo

E, sugado pela escuridão,

Subia aquela montanha

Que parecia infinita

Ante a minha escassa visão

Já era alta madrugada

E lá ia meio perdido

Quando sentir passar por trás

Um corpo diluído...

E eu neutralizado pensei,

Não vou olhar para trás

Seu olhar está cravado em mim...

Seu olhar está cravado em mim...

O ar ficou mais carregado

Senti as trevas mais úmidas

E um leve pisar após cada

Passo que eu ainda dava...

E foram me roubando o ar

E eu já não sabia o que pensar

E eu rezava muito baixinho

E queria também gritar,

Mas aqueles olhos me seguiam

Cruelmente a vigiar

Dos meus traços o congelar

Eu nem lembrava de mais nada

Tinha sumido o resto do mundo

E ali naquele longo momento

Remoía-me um sofrer profundo

E eu fui seguindo...

Olhava às vezes rapidamente

Alto, da montanha o final

E sentia que ainda ia demorar

Minha estadia com aquele

Ser de presença infernal

Uma hora eu senti

Que ele tocou no meu pescoço

E eu me paralisei

E senti que já estava morto.

II

E então eu pude ver

Toda aquela multidão

Que me olhava esquisito

Imersos na escuridão

Eu fiquei petrificado

E meus órgãos se espremiam

E retesados não respondiam

Ao desespero que eu sentia

E foi nesta hora que pensei,

Que desgraça, horror sem fim,

Ouço esses vis elementos

Que mostram as chagas a mim

E eu continuava sentindo

Aquela pesada presença

Que as minhas costas estava

A se aprazer dos meus chistes

No momento em que desesperava

E eu procurei o caminho

E minha vista não viu a montanha

E eu não estava mais em vida

Presenciando aquela visão tamanha

E eu tentei falar, mas

Só saíram urros trementes

Que iam se perderem no vazio

Da vastidão de vida ausente

E então ouvir assim dizerem,

Não mecham com ele,

Ele não é alma penitente

Ainda não está conosco

Deve passar livremente

Ele tem poucos anos

E vai vir para gente

Tenho seguido sua vida,

Não é das mais rentes

Vamos apenas avisá-lo

Que estamos cuidando

De cada passo que ele dar

Ao longo dessa se findando

Ele está inerte, não pode andar,

Mas ouvir ele pode,

E assim ele vai nos cantar

Em tempos vindouros,

Para outros nos apresentar

III

Foi ai que então

Aquelas bocas desgraçadas

Começaram a gritar

Com voz não comparada a nada

E falavam rápidos, raivosos,

Com os dentes podres à frente

A querer que eu bem entendesse,

E com isso carpisse fortemente

E eram como cobras que

Enroscavam-se em mim

E na altura da cara, chiando,

Um a um me dizia assim,

Eu sei o que fez!

Eu vou te pegar

E estou esperando

Esse corpo deixar!

Eu te conheço

Sei teu mistério

E te espero

No cemitério!

Bem feito bem feito

Que preguiça essa tua!

Agora agüenta

E olha à visão nua!

Tu vai cantar!

Vai ter que cantar

Pra outros de lá

Os astutos pegar!

Eu vi teu fazer

E me regozijei

Quando te vi lento

Por ali entrar...

E um como a morder

Assim me falou,

Eu já tive carne

E fui teu parente

E hoje de odeio

Mais que antigamente

E foram falando

E eu os ouvia

Suando, tremendo,

Em total agonia

IV

Outra coisa me chamou

A atenção, me virei

E vi lá por trás

As almas perdidas,

As filhas de Satanás

E elas sofriam

Choravam de dor

Mas tinham altivez de

Quem não se renegou

E elas me olhavam

Cheias de inveja encabada

Seus olhos me corroíam

Os destroços de vida

E eu sentia dor só em ver,

Os olhos queria fechar

E aí senti nas pálpebras

Alguém as unhas cravar

Assim não pude me esquivar

Daquela horrenda visão

E lancei um triste olhar

Para decomposição dos irmãos

E eu estava vendo,

Eles mostravam as tripas

A se lastimarem de dor,

Mas eram vazios de amor

Seus olhos não via

Só tinha um vazio escuro

A derramar certo liquido

Como de um podre monturo

E diziam como tinham morrido

A mostrarem suas partes

E se mordiam sem parar

De forma alheia a toda arte

Eles pareciam se preparar

Para uma conversa sem fim

Quando vi que se apresentava

O ser que estava atrás de mim

V

Num certo momento

Eu ouvir um clamar

Uma ordem imposta

Pro barulho calar

E então o ser que estava

Sempre por trás

Falou mais claramente

Aqueles que já foram gente,

Já chega, já chega!

Ele tem pouca idade

Não vai entender

Essas coisas de mortandade

Deixemo-lo que se vá

Abram, saiam do caminho!

Ele é um dos nossos,

Não o deixemos sozinho

Ele vai caminhar

Por esse mundo deles

E vai um dia cansar

Um dia ele vai voltar

Deixem-no, vamos, saiam!

Tiremo-los as imagens mais cruéis

Dessa noite que lhe é terrífica

Pra ele achar que tem esperança

Em sua perdida andança

VI

E então

Eu fui me encontrando

Enquanto no alto chegava

E tive a sensação

De que me fui atraído

Ao mundo das almas danadas.

E então lá do alto

Ainda olhei para trás

E vi o Campo da Paz

Com uma sensação contumaz

Depois eu fui andando

Como se dos ossos minha

Carne pendesse, e eu sentia

Como se tudo tremesse

............................................................

Voltei do meu destino

Quando o dia estava raiando

E não vi mais nada daquilo

E então eu pensei,

Foi o sono, foi o sono...

Acho que ando sonhando...

Mas até hoje eu penso

Que tem alguém me observando.

Sebastião Alves da Silva
Enviado por Sebastião Alves da Silva em 11/04/2006
Reeditado em 16/09/2006
Código do texto: T137126
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