Sereia Seria

Roubaram os afagos do mundo,

imaginados na areia.

O sono não era profundo,

a mente descansa e tapeia...

O que lhes parece fecundo –

o mar, a maré muito cheia –

por certo estará lá no fundo,

no fundo com alguma sereia.

O apocalipse inventado,

o renascer da heresia,

o óleo que foi besuntado

nos corpos de pele macia.

O riso não era esperado

na reza que se oferecia.

Alguém batizou de pecado

o fogo no peito que ardia.

Cabocla correndo descalça

com seu estandarte na mão.

Lá longe o pintor lhe realça

no brilho do olhar a paixão.

Com seu vestido sem alça

sem cor, sem valor, sedução,

se joga pra dentro da balsa

com sonhos fugazes que vão...

Dobrada a vontade do vento,

o barco orgulhoso se vai,

enquanto na areia o aumento

do peso do mundo não cai.

De baixo pra cima, o alento

da dor se conteve no “ai”;

de cima pra baixo, o momento

do amor que não se subtrai.

Os corpos cansados, caídos,

cobertos com a luz do clarão,

parecem que estão protegidos

pelo calor da expressão

de sofrimentos partidos,

gerados naquela estação

de trens que se foram sortidos

de pensamentos em vão.

Todo desejo profundo

cabe num grão de areia.

Queixo levando pro fundo

uma cabeça tão cheia

do que não há nesse mundo,

do que a luz não semeia,

com exceção de um segundo

nos braços de alguma sereia.

Rio, 05/05/2006