Sono Dogmático

Uma cadeira na sala chora silenciosamente por todas as crianças

que já sentaram nela durante dezenas de gerações,

E os resíduos de seus corpos desmaterializados pelo tempo

ainda permanecem pulsando na memória dessa cadeira.

Essa imagem refletida no espelho foi a que deveras construíste com tuas próprias mãos;

Ou ela foi lapidada, modelada e pintada por outras mãos?

O que esses livros mortos fazem entre tuas mãos espectrais?

O tempo mutilou todos os relógios do mundo,

E todas as mães cospem de suas vaginas crianças autistas,

E as árvores se atiram nos rios envenenados,

E palavras tão profundas são escritas em um diário

num quarto desconhecido pela sociedade,

e os joelhos se cansaram de rezar,

e o dia-a-dia é um campo de concentração neonazista aburguesado.

Os olhos dos que te vêem penetram, como cães no cio,

por todo o teu corpo e tua alma;

Ainda estará vivo aquele teu estupendo pensamento

que escoou pelo rio Lete do Inconsciente?

A ataraxia dos desejos suprimiria o desprazer e os gritos do tédio?

O tédio é o pai de toda forma artística e estilística humana,

O mundo humanizado para repelir os espectros do desconhecido e do incompreensível.

Aprisionado na marmorizada crisálida eclesiástica,

Num ciclo indefinido de autopiedade e auto-aversão simultaneamente interiorizado,

Enquanto as sombras da realidade disforme penetravam em tuas retinas,

Chamando-te para o esplendor de flores ígneas de novas paisagens.

Há nódoas de sangue coagulado no manto que encobre tua alma,

Os acordes sinfônicos da morte e do ilícito acariciando

as células de teu cérebro,

Estricnina goteja de tua dialética cultural,

Teu corpo é mais expressivo do que tuas palavras e frases;

Teus olhos observando as pessoas e o mundo são incapazes de ver a si próprio vendo,

E cada vez que te contemplas no espelho uma parte de ti é devorada por ele.

Não serei eu quem desaparecerá para o mundo ao morrer,

Será o mundo que desaparecerá para mim enquanto permanecerei não-sendo.

Sou filho das estrelas ancestrais,

Sou o orgasmo do nada,

Os mistérios do universo circulam dentro de meu corpo,

Pois eu estou em todo o universo,

E todo o universo está em mim.

Ó Artífice dos átomos lingüísticos radioativos: lançai o caos em toda alma humana,

A fim de que despertem desse torpe sono dogmático.

Gilliard Alves

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 30/03/2010
Código do texto: T2167301
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