Infância

INFÂNCIA

vim de muito longe, lá de onde só havia o campo, sem horizontes

acostumei-me, em criança, a decifrar as pequenas luzes do Passo do Tigre

vizinhos e parentes distantes

cresci solta nos pagos. brincando com ossos de vacas e ovelhas

corri, em total liberdade, por avenidas de eucaliptos

com minha pequena trouxa a esconder-me nas sangas, onde tirava os sapatos e brincava nas águas puras do Camaquã

montei cavalos xucros, recolhi às mangueiras vacas de leite. criei pequenos guachos com mamadeiras e afagos

subi em árvores, recolhi caturritas caídas de seus ninhos

fui picada por cobras

à noite, ouvia o vento assobiar, triste, por entre as árvores

não imaginava que pudesse haver algo além daqueles cerros, daqueles marcos das porteiras

não havia limites nos passeio até a cacimba

andei descalça pela terra preta que circundava o chalé azul de madeira

comi butiás no pé, quebrei amêndoas com pedras

aprendi a ler e a escrever, com minha mãe, no “quartão”- restos da casa original

criei-me, em convivência pacífica, com peões e seus filhos

ajudei a fazer pão, comi milho assado e toquei a sineta no almoço e jantar

matei formigas, à noite, com meu pai. aprendi “as coisas da vida” com meus irmãos, entre sussurros e risadas e um certo espanto

assisti, assombrada, a “carnear” ovelhas e vacas e a banhar o gado

ouvi, sem interesse, os “causos” dos homens nos galpões enquanto chimarreavam

comi churrascos de chão e tomei água das cambonas pulei arames e trepei em tramas e moirões

recolhi gravetos para o fogo e dancei em torno das fogueiras

passeei em reboques entre pelegos e couros de bichos mortos

escondi-me nas sacas de lã na tosquia das ovelhas e me fascinei com a “máquina esquiladora”

pesquei lambaris nos riachos com minhocas como iscas. cacei mulitas nas noites enluaradas

pulei e saltei nas plantações de trigo como a menina que fui

arranquei o rabo dos lagartos e assustei os avestruzes

nadei e mergulhei no “poção” nos dias quentes do verão e sonhei em conhecer o mundo nas noites frias de inverno em frente às lareiras

abandonei o Boqueirão de criança e as Três Tarumãs da adolescência, conheci outros lugares

mas as reminiscências voltam a me acompanhar enquanto olho, distraída, estradas com seus campos que me levarão para tão longe do passado...

Magda L Carvalho
Enviado por Magda L Carvalho em 20/10/2015
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