Uma história de garnizé

“E... sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?”

(GUIMARÃES ROSA – Primeiras Estórias – conto O Espelho – Editora Nova Fronteira – 15.ª Edição – 2001-Pág. 127).

Pouco ou quase nada tem de tamanho. Parece mais um brinquedo do que um bicho de cria.

E lá veio um capiau com aquilo na mão. No começo, pensei que era alguma troça, estripulia, sei lá bem o que. Essas coisas de menino criado solto e na larga.

- Oh! Seu dotô, essa daqui é a Rosita, faiz treis ano que tá aqui cô nóis. Os pintim tá lá no quintal, é seis cria por ano. Uma belezura só.

- Diacho de uma boniteza sô! Era uma nadica de nada, pesando mais ou menos 200 gramas. Cor de caramelo, pintada de branco, laranja e vermelho, não bastasse, alinhavada de um preto brilhante e robusto. A crista, feito sangue. Os olhos, de um mel encorpado circundado de vermelho forte. A barbela pelancuda, rubra encarnada. Os pés parecendo dois garfinhos de plástico, pra bolo, de festa infantil... amarelos, vistosos, bem proporcionais ou todo do corpinho.

Há muito tempo já ouvira falar, até mesmo possuí alguns exemplares no meu sítio lá no Triângulo Mineiro. Mas deste tamanhinho à toa, com essas cores vibrantes, nem em folhinha da Casa da Lavoura.

Pois bem, encurtando o discurso já fiquei querendo negócio. Pediu vinte no lote de pintinhos. Arrisquei doze, propôs dezoito, lancei quinze. Negócio fechado.

Em passo miúdo até a Ford, as mãos tomadas de garnizé, acompanhado pelo capiau, mergulhei em pensamentos, me desfiz em recordações antigas. A casa de quintal, a mangueira, o periquito. O pássaro preto que me chamava da gaiola. A esperança de crescer em felicidade e conforto, a morte do meu tio, o capote do dedão deixado na roça, a dor gostosa de passar à noite na fazenda com Vovô. O diagnóstico de reumatismo, a benzetacil, a fuga pela goiabeira, a música do rádio, o jogo de bola, a rapa do tacho, o rabo da pipa, o estilingue, os peitos da Bárbara.

E quanto mais eu olhava o passado, mais eu entendia a brevidade da vida. Quase quarenta anos correndo na minha frente, assim como que de qualquer jeito. Transformei-me num menino. E corri ao encontro da minha infância.

Quantos tombos da seringueira, a lenha do Atia, a saca de amendoim, o banho no córrego, o Tarzan com faca de pau na cintura, o arco, a flecha, as roscas da Dona Mariquinha, o muro de taipa, o chinelo da mãe, o limão pro Seu Danda, o domingo no Mosteiro, o Padre Pudim.

A fritada de toucinho com a vó, no fogão de lenha debaixo do pé de limão. A gangorra da mangueira embalando os “pra lá e pra cá” da imaginação. A bola de gude, o cavalo de pau, o arco que vinha na enxurrada, que era devidamente esmagada com os pés descalços, para horror dos passantes e desespero das mães.

- Dotô! Dotô! Em voz embargada o capiau me estendeu um lenço branco. E enxuguei as últimas gotas da recordação.

Túlio Reis
Enviado por Túlio Reis em 20/01/2006
Código do texto: T101348
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