Ausentar

Estive tanto tempo longe de vocês. A minha ausência sem explicações, que cruel!

Eu perdi um amor. Não poderia haver castigo maior, nem me obrigo a dizer que esta foi a razão da ausência comedida.

Quem de costume me lê poderá pensar, eis mais uma personagem, mais um eu lírico que sobre ela nada tem a declarar. Dessa vez, quebro a promessa, e penso que será deste modo a partir de hoje. Se antes não havia muito de mim por entre as linhas, era por falta de sofrimento. Todo poeta, qualquer que seja o escritor de apenas uma palavra em tom confessional, é cativo da própria alma. Como a brisa gélida que entra pelas janelas sem pedir, que derrete os ossos de manhã e te faz saltar da cama, ainda com sono. Assim é a tristeza rebocada em linhas. É o muito para dizer, sem de o muito dizer nada.

Não cabia em mim a idéia da confissão, eu fui feliz demais para ter o que confessar. Eu era a confissão, e meus olhos me denunciavam antes que eu dissesse palavra. A felicidade encarnada, com um pouco de sombra, de mistério cultivado porque, enfim, não poderia negar a essência. E jogar me agradava tanto.

Há duas, três semanas jamais estaria aqui para falar de mim. Entretanto, sinto que lhes devo uma explicação. Fugi de vocês todas tal qual o diabo foge da cruz. Vocês vinham, arranhavam o céu da boca, me faziam parecer tirana, fora do normal.

Uma revolução aconteceu dentro nas últimas três semanas (vamos arredondar o número, antes sobra que falta), sem que possa dizer quando exatamente e nem o porquê da mudança. A farpa de sobre a minha pele mudou-se, deixando que a ferida aguda se refizesse do tempo ou num banho de água com sal. Por mais dolorosa que pareça esta última experiência, ela fora a minha eleita. Assim, sem saber lhes dizer a hora ou a razão, está a sarar dia a dia em progressão aritmética.

Na minha mente durante todo este curto espaço de tempo, percebi a capacidade comum a todos nós de mergulhar na própria imensidão, no mundo dos meus olhos, que outrora expressaram contentamento. Vivi entre a dialética dos sentimentos nobres e das maiores mazelas da piedade humana. Todavia, as palavras se mostravam tão perfeitas e belas, completas de sentido que em uma frase colocariam mais do que meus olhos poderiam suplantar. E eu não as queria. O que elas diriam ao mundo? A epopéia da dor, da dor de amor, da decepção. Não! Nunca me dignei a ser gratamente triste e fazer com que chorassem o pranto que me pertenceu. Cada qual vela seus mortos, e cada morto têm sua hora de nos transpor. Ainda não alcanço a vontade sincera de desejar descanse em paz.

Possuía as palavras. Mentira. Ninguém as possui. São elas quem nos domam pela mão de ferreiro ou casualmente pela sua retórica de sedução, cuja presença é inconfundível. Palavras que vez ou outra nos deixam órfãos como num abandono, irônico e desconcertante. Mas naquele instante, melhor, naqueles instantes inacabados, eu tinha que me relatar por inteira, e as palavras se apresentavam diante de mim como a fé aos desesperados. Escrever se tornaria a minha redenção, a ressurreição. Qual seria o tamanho da hipocrisia, caso eu permitisse ressurgir aquilo que ainda não está morto? Ninguém possui a chave misteriosa do amor.

Serei mais confessional. Não quero falar de teorias, de aprendizados, embora muito eu tenha apreendido, principalmente acerca de mim, dos meus limites, dos meus detalhes e das minhas carências. Eu reconheci as minhas carências, e nunca dei passo maior rumo à humildade enfiada no poço de tamanho egoísmo. Que fazer? São as inexplicáveis contradições da vida.

Havia um hiato entre mim e as palavras. Em toda a sua exuberância, elas não bastavam. Eu não admitia que elas bastassem para o meu alívio. O nosso amor, que me parecia gigante e se reconstruía do passado, não deveria render-se ao seu julgo totalitário.

Quero ser a sentinela dos meus medos e dos meus amores como sempre busquei. Volto a ser haurida pelas palavras.

Falemos do amor que tive, e que tenho. Ele não morreu. Amor de verdade nunca morre. Mora nesta assertiva uma das poucas e insondáveis constatações que faço sobre mim mesma: eu amei de verdade, e como mulher que sou não esqueço fácil. Meu morto se foi, partiu. Era hora. Não que eu tenha sofrido por tanto tempo, se bem que o tempo para mim é nada, mas geralmente quando a viúva vela seu homem, de hora em hora se esquiva da ausência do amado, da tortura de vê-lo tão presente, correndo a sua frente sem que possa agarrá-lo pelos cabelos. Vai para um café, escutar as lamentações de outrem ou, por intermédio de um comprimido qualquer, tomba ao colo de um filho. Ela tem descanso. Eu não tive, velei meu morto todo o tempo. Hora alguma de lá me ausentei. Palavra de mulher ferida: estive com ele no suspiro derradeiro. Mas até quando eu estava licenciada, as palavras não deixaram de me afrontar, de insistir convidativamente. Falar o quê?

Eu não sepultei o meu amor. Ele sempre vai ficar aqui, no coração. É assim com todo amor de verdade. Permanece, e com ele as dores do fim, piores que dor de parto. São dois calos que apenas as mulheres sentem, levando para a eternidade na lembrança. Não estou negando o amor dos homens, longe disso, causar polêmica demais não faz meu estilo. O que quero dizer com todo este parágrafo prolixo é que o amor que senti não foi esquecido, ele apenas deixou de protagonizar a minha vida. Descobri o mundo grande, além da compreensão banal, mas que cabe dentro dos pequenos prazeres sem sentido de viver. O cheiro de uma manhã de verão, o imperscrutável futuro que assombra e que, generosamente, também surpreende.

O amor assusta, tira o chão sob os pés, faz das velhas certezas, inseguranças arrastadas. Da palavra dita, especulação. Do curto silêncio, mistério. Do choque de um final de caso igual a tantos outros, a dor mais latente e gritante. Faz com que se queira morrer, e dos olhos, suspensos diante da morte em vida. Não estou sendo romântica, é real! Amar ainda vale a pena.

O que sobra? Inúmeras indagações, o silêncio dos amantes. Um amor calado, a esperança de recomeçar. Aquele soluço antes de dormir, o cravo antigo no pensamento, a fonte incessante e inútil de palavras, de palavras, de palavras.

Géssica Ranieri
Enviado por Géssica Ranieri em 12/06/2008
Reeditado em 16/07/2008
Código do texto: T1031320
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