DENTRO DE MIM

Me arrisco a entender a natureza das coisas que me ocorrem, do bem que me socorre, do mal que me percorre, do pó que em mim decanta, do que à minha melodia empresta um tom de criança. Minha ingenuidade criadora, sem destreza, sem certezas, quase morta, resguardada atrás da porta, sobrevive sempre ilesa.

Sem paradeiro, parada, sem porto, sem vinho, com vinagre, vim da areia barrada, da lama, da gana, do charco, do mofo. Vim de uma deusa mundana, descendência profana. Vim de um real milagre de uma santa do pau oco.

Minha vida, sob o peso da canhota, à esquerda de tudo, nas esquinas do mundo, no meu lógico absurdo, no bater das botas, num infinito segundo que já não importa.

Sou áspera. Pária, nos páreos da vida em fuga desembestada com destino ao nada. Decerto, meus desertos estendem a caminhada e me entendo múltipla, impessoal, despersonalizada.

Se me resgato de mim, percebo em meus maiores pormenores traços de inocência, truques de indecência, travos de incoerência. Instintos na flor, na pele, no que se me expõe, no que me repele, no que me compele a decretar autofalência.

Instigante, fugaz, identidade vicejante. Um vício, meu penhasco, precipício sem fim, sórdidos detalhes de mim, anomalia intrigante desafiando a ciência. Extravagantemente humanos meus sinais se extravasam. Extra, vagueiam avulsos em meus extremos confins, nos três reinos da natureza. Me leio, me pós-sinto animal, me permito vegetal e galgando os meus degraus me acho pedra azul turquesa.

De grão em grão crio tempestades de areia, minhas dunas, meus desertos. De grau em grau esquento meu inverno, mudo de estação, amplio a visão e ao me ver verão, posso enxergar mais de perto.

Reflexiva, em introspecção compulsiva, sinto os espinhos que me ardem, me escravizam, que me ferem e cravam a pele, numa dor feroz que minha acidez digere. Soluções definitivas em idéias que me invadem não curam, não duram mais que os instantes insuficientes que lhes cabem.

Caio sempre em meu julgo. Me expurgo. Dentro de mim há verdades choradas, minguadas, casadas e batizadas, por pagã necessidade. E, se não for mais uma mentira, dentro de mim há saudade.

Me satisfaço no íntimo com a pouca luz da incerteza. Uma proeza, um alento.

Dentro de mim o céu nublado, a escuridão, os temores, os choramingos e horrores, mesmo que em breves momentos, se dissipam, se esvaem em vendavais multicores que me levam ao meu édem, no vento qual passarinho. E em meio a essa panacéia, viro uma doce Dulcinéia e derroto meus moinhos.

Leocy Saraiva
Enviado por Leocy Saraiva em 23/06/2008
Reeditado em 29/06/2008
Código do texto: T1046895
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