Um abraço afetuoso

Prólogo:

Havia pouco tempo que eu chegara do Fórum. Estava exausto, meio inquieto pela excitação de duas audiências assistidas, maçantes e pouco ou nada produtivas em termos financeiros. Precisava, com urgência desabrida, tomar um pouco de vinho para aplacar o desânimo.

Lembrei-me da vizinha de sorriso cativante e fui vê-la com a desculpa de comprar um naco de queijo. Afinal, não é esse o melhor tira-gosto para um bom vinho? Quem sabe eu ganharia um abraço afetuoso? Naquela ocasião a tarde estava sombria, negrejante. As nuvens escuras eram o prenúncio de chuva torrencial que eu menos queria.

Mamãe Júlia (que Deus a tenha), quando eu saia com o tempo ameaçador sempre dizia: “Cuidado! Lembre-se de levar o guarda-chuva. Vai chover a cântaros”. Mamãe gostava da expressão: “Chover a cântaros” (torrencialmente).

Onde teria tão simples mulher, do lar, aprendido essa erudita expressão? Admiro-me porque ela, igual a quase todas as pessoas, dizia: “Nelson, o filho de comadre Dalva, sofreu um acidente de carro e corre risco de vida”. Ora, risco é sinônimo de perigo! Ninguém sofre perigo de vida, mas sim de morte.

Minha querida mamãe Júlia faleceu aos 67 anos de idade, em 1983, sem saber que a expressão correta é “... sofreu um acidente de carro e corre risco de morte”. Isso hoje não importa. A mídia, por intermédio de seus briosos profissionais, ainda hoje, também não sabe disso.

Pobres de nós brasileiros, principalmente crianças e adolescentes que desaprendem mais que aprendem com novelas de conteúdos escabrosos e telejornais ruins.

Sinto falta dessa ex-todo-poderosa mãe, cujo exemplo de ternura e dignidade soube transmitir aos filhos e netos. Quando meio nervosa estava, por conta das peraltices dos meus irmãos e minhas, não dizia coisa com coisa, mas se impunha como bem sabia na base da porrada.

Digressões à parte, volto meus pensamentos para a ex-vizinha, que trabalhava de caixa em um estabelecimento comercial muito higiênico e elegante sito no bairro onde moro. Fui ao encontro da fina dama e ao me aproximar do suntuoso e iluminado ambiente vi o mais expressivo sorriso que uma criatura humana poderá esboçar.

Linda e com gestos adamados, aspergindo um cheiro inebriante do corpo bem proporcionado, ela estendeu os braços, inclinou a cabeça para um dos lados, jogou os cabelos negros, longos, para trás, e sem articular palavras disse-me em pensamento:

"Anseio que se rasguem em gestos espontâneos, simples, não ensaiados, minhas vestes leves e mostrem minha nudez morena, perfumada e trêmula, os cabelos longos, soltos, nigérrimos, enfeitados com brilhantes, para tentar lhe agradar e tirar esse sorriso maroto, meio triste, sem jeito de se esboçar dos seus lábios bem-feitos.

Embarquemos a toda a brida no veleiro dourado que singrará o rio caudaloso da paixão reprimida, insana, inconseqüente, verdadeira, proibida; forjada no cadinho da esperança e cultivada no seio do desespero pela certeza de minha breve partida; trazendo tempestades medonhas, não desejadas, a partilhar meus fantasmas, com vagas fumegantes e sulfúreas, com espumas de luzes difusas coloridas".

Foi baseado nas palavras acima imaginadas que escrevi o texto afoito intitulado: “A despedida que eu não queria”. Naquela ocasião, após o desejado e gratificante abraço, um período inteiro foi urdido em minha mente carente, talvez irremediavelmente insana:

“Venha lesto, ponha o corpo feminil ansioso, febril, desnudo; frente ao meu para ser beijado com volúpia, num tumultuado atropelo sofrido, assim como beijei o chocolate brando que lhe ofertei numa exteriorização desejada do meu negro desespero doido”.