da magrelinha

Por vezes, me arroubam lembranças da casa velha, da rua da ladeira, do terreno com o pé de graviola, a goiabeira e as lagartas verdinhas...de um verde-vivo, as listradas, coloridas, gorduchas, lindas e lentas, borboletas, morcegos, vaga-lumes, lesmas que faziam mapas com seus visgos brilhantes na parede, no muro da casa velha, lembro da amiga de infância, do quintal, dos cheiros...

A casa velha, ainda envelhece mas não morre em mim, a rua da ladeira ladeia minha memória, com seus sobrados subindo pelos céus do Rio suburbano, o terreno agora baldio, sem pé de graviola e sem goiabeira, sem mais lagartas nem borboletas nem morcegos ou vaga-lumes, parte do terreno foi cimentado enterrando todas as lesmas e seus mapas misteriosos, coisa sem pé nem cabeça.

A amiga, vez em quando é que lembro dela, de nós, do tempo de nossa meninice. Nosso primeiro beijo foi no quintal da velha casa, era dia ainda, nos beijamos antes do pôr do sol se deitar no morro lá em baixo... um beijo mordido, na verdade foi um beijo de dentes, pois ríamos sempre demais, bastava olharmos uma para outra e tudo era motivo para risos, abraços e beijos.

O beijo de dentes fazia aquele barulho de ossos se resfolegando... Ela me mordia e beliscava, e rindo dizia ser gostoso porque era durinha a minha carne, a danadinha. Eu corria atrás dela... pra quê? Não sabia o que fazer com ela se a pegasse, então deixava ela fugir, cansada e bufando ela sentava em qualquer canto e, depois eu vinha de mansinho sorrindo e beijava sua orelha de supetão, ela tinha uma orelha de abano, era essa que acarinhava, ela escondia com os cabelos escorridos e loiros, era linda a magrelinha.

E eu era aquela orelha de abano no mundo, na vida. Sabia, não tinha jeito... Gostava do cheiro dela, sempre fui muito ligada a cheiros, gostava quando batia um vento e aqueles fios dourados se embolavam nos meus de arame farpado... ela tinha corpo esguio, ombros e braços bem torneados, mãos de sabiá, olhos lúcidos e pele clara em tom alegre, cor de céu antes de entardecer, dois botões rosa da cor do sangue quando vem fervendo à epiderme, rosa mosqueta... duas acerolas lhe estampavam o peito, sumo escorrendo no canto da minha boca, mas o que eu mais gostava nela era o modo como me chamava no portão, quando gritava meu nome acordando os vizinhos.

Chamava forte e vez em quando já ia entrando, porque sabia era de casa, sabia que eu a amava. Até hoje ainda a ouço chamar-me na casa velha.

Muita vez sentávamos no meio da rua, bem no meiozinho de calçada da rua da ladeira, imagine uma calçada no meio da rua! então víamos e sentíamos os carros passando de um lado e de outro, a morte tirando fininho da gente, zunindo no nosso ouvido, soprando no nosso cangote, ficávamos ali de tardinha até de noite, conversando, matutando, comentando planos e segredos, outras vezes em silêncio e outras ainda às lágrimas... tudo o que eu não queria era ficar longe dela, nunca, nunquinha!

Um dia ela me disse que iria viajar, eu quase morri. Mas fiquei alegre, porque eu vi em seus olhos clareados de esperanças a vida pedindo passagem e disse: vai e aproveita, só não esquece de mim, lembra do gosto que é morder e beliscar minhas carnes duras, suadas.

Foi numa manhã, eu dormia perto da porta da cozinha e acordei nesse dia com ela batendo, assoprando na orelha de abano enroscada de manhã, chamando meu nome baixinho pra não acordar ninguém, assim feito brisa passando, indo embora... abri a porta, nos abraçamos de amor, saudade do tempo que eu sabia, ia passar de vez a partir daquele dia! cheirei seus cabelos loiros, beijei-a, apertei-a contra meu peito e pedi que se divertisse muito. Ela foi-se apressada, a magrelinha. Não olhou pra trás, seus cabelos embaraçando-se no tempo, me acenavam em despedida de quem não voltaria mais.

Sentada ainda num trapo de lençol puído estendido no chão eu vi que ela não voltaria mais e se voltasse seria apenas para um sorriso ao largo, uma passada rápida, e meu nome não escorreria pelos seus lábios, nossas bocas não se tocariam mais em palavras, nossos caminhos ali tinham se bifurcado. De repente me vi aquela rua da ladeira se bifurcando em duas e dando para outras ruas que dariam pra lugar nem um.

Olhei ainda sem muita esperança, coisa que também sempre me faltou, vi com meu olhar de cadela que perde filhotes... ela virando o muro enquanto sentia o cheiro daquela saudade-vontade em minhas mãos. Chorei, chorei sozinha e silenciosa caindo no meu túmulo de sonhos, era o nada, vazio outra vez, a sensação de um despertar do sonhando-meio-acordada. Fez-me falta durante uma eternidade aquela magrelinha.

E até hoje, a morte tira fininho de mim.

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 27/08/2008
Reeditado em 30/08/2008
Código do texto: T1148838