{À noitinha... }

À noitinha funda, no quarto adormecido de sombra e luz, absorvida com o olhar fixado nos olhos da noite, porque bem de pertinho me vi inteiramente refletida nesse reflexo hipnótico, entrei na vida da noite-escura-íntima que era meu próprio sonho.

Então, foi quando a noite se contorcia em cólicas que eu abortei-me.

Percebo que ainda está amanhecendo, estranhei estar viva, entranhei no dia, levantei meio desesperada com a sensação de ter me atrasado para a viagem e ter perdido o trem.

Levanto, tomo uma xícara de café que preparei ouvindo o grito de um pássaro que ainda não sei o nome, mas já o escuto há muitos anos, já nos ouvimos e nos vemos muito tempo, ele grita e suas asas riscam o céu rosado atrás dos coqueiros, tomo mais uma xícara de café, saio e bato a porta, em silêncio.

Deixo o quarto para trás, sei que ainda voltarei a ele, onde crescem os sonhos mofando, minhas esculturas e desenhos em carvão de mulheres, algumas sem rosto e aos pedaços, mas todas elas, mesmo sem cabeça têm o olhar até perder de vista e se lançam para frente.

Desço as escadas num caracol tonto-tortuoso, coisa mole escorrendo nas reentrâncias dos degraus, alcanço a rua com um mundo pendurado nas costas que me golpeia os rins. Olhos e corpo sonolentos, areados. Logo me impregna o antigo cheiro de mar. Piso em buracos, essa cidade é cheia de buracos, não escapo de nem um , tem pau, tem pedra no todo do caminho, vou rolando com elas, vou lambendo essa terra que outros pisaram, que muitos morreram.

A estrada que me percorre, transpassa-me a garganta e desanda no sangue, no corpo.

O sol me arde até os ossos, mesmo assim continuo caminhando, deixo as sombras para trás. Caminho a incerteza de um futuro que nada promete. Sou toda incerteza. Meus passos apressados criam uma névoa de poeira, tenho sede e a velha vontade de chorar, vontade seca e pesada de chorar, um choro de eras entalado na goela... um rio seco, com seus peixes dentro de tumbas, poeira, pedras, barro.

Vontade de parar, sentar no meio fio e chorar horrores, o desespero.

Chorar a inutilidade de ter nascido, de viver, de fazer tudo e sempre outra vez, chorar as incertezas tantas e a certeza da morte, a falta de sentidos, a fugacidade, a fragilidade e absurdo de tudo, as margaridas murchas, as azaléias secas, os ibiscos caídos, as rosas amareladas, os girassóis apagados, os lírios despencados, as portas fechadas, as barcarolas que afundaram nas águas pantanosas de Iemanjá, as crianças desengadas do Mário Kroeff, do mundo... chorar o mistério soberano das coisas, as perguntas sem respostas, as perdas, o tempo perdido, o pai desconhecido, o filho morto, a distância da amante, o amigo na distância, a cadela da infância carregada pela carrocinha, a morte nos ossos e sem poder morrer, arrastando palmos de língua e os bofes para fora pedindo pra morrer e não morro, eu. Chorar os cavalos escravizados, sofridos que empacam em meio a avenida principal , de cascos feridos pele queimada e pêlos lascados, focinho se erguendo no ar ao sol, gengivas espumantes, relincho eriçado e agônico, ensaia o último trote para o nada e tomba seco no asfalto, chorar até eu desentender tudo, tudinho... até ver se colocaria um ritmo linear em tudo isso, e ver de novo a primavera encher as árvores dos campos, os quintais das casas com as flores mais simples, com hortelãs e alecrins, e os canteiros de borboletas... (nem adianta me dizer que este período está longo demais, às batatas os períodos, que a vida é um curta fulero sem categoria, eu ando sempre pela horinha, me alongo ao máximo, como um subúrbio se ergue, se tenta alcançar, se estende em lajes, antenas, sobrados subindo, tanto que se in_define, me espicho como quando a tarde crepusculosa se alarga buscando o centro e a outra margem de céu, horizonte se deitando na terra feito pó que se assenta sobre as coisas com o tempo, me alongo... estrebucho, mas não suportaria a eternidade.

Continuo, e desconsolada pasto, passo nessa vastidão de desesperanças secas, sigo errante, me dobrando em esquinas... e um tapete rosa de pétalas de flores úmidas de jambo se estende diante de mim e um cheiro macio toca-me com lubricidade, umedecendo os pés, os olhos, os lábios, o corpo-jambo refloresce.

A rua me atravessa, e eu dou para lugar nem um, e vice-versa. Nunca chego e me perco logo de manhã cedo, será dou voltas aos quarteirões?

A luz inteira do dia vibrante e repleto, mas algo me prenuncia noite caída-crescente e cheia de bolor. Me enjoa a vida, esse existir repetido e fraccionado.

À noite retorno ao quarto, balanço o vazio da rede onde durmo, os olhos da noite me olham como alguém olha para o horizonte, para o centro impossível de mim.

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 08/09/2008
Reeditado em 13/09/2008
Código do texto: T1167495