Excelsa moradia lúdica

Prólogo:

Trata-se, em verdade, de um texto onde existe um contra-senso abissal, pasmoso, aonde os valores intrínsecos vão de encontro à moral, à normalidade e aos costumes.

Enxameiam, por isso mesmo, na sociedade, os solitários por livre opção e os outros que se consideram marginalizados ou são deixados a distancia pelas conveniências dos grupos.

Por essa razão o irreal, que esconde o caráter legítimo e as lidimas aspirações do ser, conduz à psiconeurose de autodestruição através dos excessos e ignóbeis fantasias.

Henrique e Analu vivenciavam essa fantasia que se materializava em seus encontros fortuitos. Às pressas, eles não se realizavam na plenitude dos seus desejos, mas abria uma brecha enorme para a lufada de uma brisa nova e edificante para a consolidação dos seus ideais.

Como sempre acontecia nas tertúlias promovidas por Henrique poucos eram os convidados. Jade e Hulk, naquela noite, estavam inquietos mais do que o de costume. Os comensais eram apenas quatro: Yanni, Enya, Analu e Henrique.

Analu vestia um conjunto leve e atual: uma saia cinza, blusa verde, sandálias nº 35 combinando com a leveza da indumentária. Os cabelos negros e longos não se esparramavam sobre os ombros porque uma tiara, onde existia uma borboleta brilhante, os prendia delicadamente deixando à amostra um rosto plácido, moreno, bonito, sem maquiagem.

Yanni com sua indumentária branca, cabelos negros, longos; barba bem escanhoada e bigode nigérrimo; sorria feliz por saber que os demais convidados saberiam apreciar sua músicas principais: "Prelude", "Renegade" e "Love is all".

Enya com seus cabelos curtíssimos, negros e pele tão ebúrnea quanto o mais fino marfim, resolveu ir à festa vestida de azul-celeste. Era um longo brilhante como seus olhos negros; nas orelhas delicadas um par de brincos e no pescoço delicado um colar, tudo em safira. Cantou para o deleite de Analu e Henrique suas mais conhecidas canções: "A day without rain", "Only time" e "Lazy days".

Claro que nos intervalos, entre uns e outros goles de vinho e degustações divinas ouviram-se outras músicas francesas, italianas e brasileiras tais como: "Quelqu'un m'a Dit", "Raphaël", "Come nasce un amore", "La strada bianca", "Razón de viver", "Gracias a la vida".

As músicas francesas foram interpretadas por Carla Bruni, as italianas por Nico Fidenco e as músicas brasileiras foram interpretadas por diversos: Mercedes Sosa, Zizi Posi e outros. Para arrematar Analu desejou ver, novamente, o vídeo de Andrea Bocelli e Sarah Brightman interpretando "Time to say goodbye". Foi nesse momento que Henrique ganhou o beijo mais doce e demorado de toda a tertúlia.

Muito à vontade Analu ria e fazia rir os poucos convidados. Ao fazer um ar de riso mostrava os dentes perfeitos dando um contraste luminoso aos lábios sensuais e brilhantes.

Quando cruzava graciosamente as pernas mostrava que as magricelas adolescentes teriam muito que aprender com os trejeitos que exteriorizavam a candidez viçosa à maneira de uma fruta madura que provoca o apetite acentuando a vontade de cheirar, lamber, morder, comer.

Depois do “show” de Yanni com o seu tributo à música, mais erudita do que “new age”, Enya regalou a todos com sua voz maviosa. Os acordes dos violinos foram capazes de emocionar, sensibilizar e enternecer, também, Jade e Hulk. Eles se acalmaram mais ainda.

Henrique esperava, pela irascibilidade própria de suas naturezas caninas, muito barulho e reclamação por parte desses convidados especiais. Isso não ocorreu. Ficaram quietos e não ladraram como de costume diante de estranhos nas proximidades.

Atrapalhado, talvez embasbacado com a ousadia bem-vinda de Analu, Henrique serviu um tinto suave, azeitonas, cubos de queijo e presunto defumado ao gosto da estrela que abrilhantava a reunião de amigos com seu esplendor e simpatia sem igual.

Claro que havia uísque, Campari®, licor cremoso de chocolate com laranja, Martini® e Coca-Cola® Zero. Essas bebidas não foram servidas porque não houve tempo e tampouco necessidade.

Embora Analu deixasse evidente que só queria degustar o vinho tinto e suave havia também uvas brancas, abacaxis, mangas, peras, maçãs e sorvete de chocolate italiano com cobertura de morango.

Tudo estava perfeito, mas o centro das atenções eram as pernas aveludadas de Analu. A lembrança da vovó Josefa fez-se presente. Parecia, no ar da noite fria, um cobertor aconchegante ao dizer e ensinar: "...Tenha calma, muita calma. Sopa e papa quente se come pelas beiradas, bem devagar". Vovó tinha sobeja razão. Não havia pressa.

Observando mais atentamente Henrique se perguntava se o texto intitulado “Pernas” não fora escrito sob a auspiciosa luminescência de um gratificante sonho e com vistas a essa menina-mulher. No supracitado texto foi escrito:

“Belas pernas que me provocam ciúme, atraso espiritual na representação do mais vil e amargo queixume de quem sempre buscou, durante toda a vida, alguém para chamar de excelsa estrela azul mais brilhante, amada e querida complementação de meus anseios”. (Pernas – 2ª Parte).

Na noite anterior Analu falou ao telefone uma frase mágica: “Você está me fazendo um bem...”. A recíproca era verdadeira. Henrique estava mais inspirado e se sentia como não se percebia há muito tempo. Leve. Solto. Descontraído. Em sintonia com o seu eu que se perdera nas vias obscuras do passado longínquo.

O sábio vovô Muniz já dizia com muita propriedade: “O melhor repasto para cavalo velho é capim novo.”. Ao ouvir esse refrão a vovó Josefa Conceição, enciumada e proterva, dizia: “Isso é verdade meu velho, mas não se esqueça de pôr vara nova na cerca velha”. Meus avós bricavam ensinando e os netos felizes aprendiam. Oh! Quantas saudades desse tempo e dos adágios estimulantes ao surrealismo.

A reunião corria alegre e iluminada pelo sorriso espontâneo e juvenil daquela que sabia eletrizar o ambiente. Colocando a ponta do dedo indicador entre os lábios Analu disse: “Você sabia que eu gosto de chupar dedo?”. Sem pensar e numa fração de segundo Henrique falou: “É um excelente exercício”. Ambos riram e compreenderam a natureza, essência ou agudeza do que estavam pensando inconscientemente.

Beijos lascivos foram trocados. A mente perspicaz do autodidata dava voltas e mais voltas em busca de um passado há muito tempo vivenciado. Lembrou-se de um texto onde escreveu atrevido:

“Ao me apossar do corpo angélico, sinto-me também possuído, sólido, líquido morno, etéreo, pulsando dentro de ti, sentindo que estou vivo para a glória de um novo e esplendoroso alvorecer, ouvindo meu balido confundindo-se ao gemido teu... ouço uma música sublime, celestial.

E nessa sacrossanta conquista do portal da luxúria, firmo minha convicção, obtenho a certeza da sedução, do subjugar, para o alcance do acme do gozo sem medo da culpa, ficando sob o teu domínio pela crença no pecado venial”. (Texto – “Sob o teu domínio”).

Entre beijos e afagos mais ousados, ansiados, incentivados pela meiguice de Analu Henrique buscava no mais recôndito de sua consciência acontecimentos na provança de outrora. Claramente parecia ouvir dos lábios macios as palavras sibilantes da Santa dizendo quase sem abrir a boca carnuda escarlate:

"Apague o incêndio que em meu interior cresce até o subir incontrolável de um grito ardente. Desejo embebedar-me na doçura do teu sumo e anseio que se alastre no recôncavo de meu ventre o morno néctar da vida. Quero tua língua, chama e pétala em minha boca, igual à orquídea rósea, fulva, selvagem e pura. Em minha vagina quero que te enraízes soberano".

Com as mãos e dedos buliçosos Henrique pode identificar que Analu não se depilava no relicário de sua redenção. Usava calcinha e sutiã de cor preta acentuando-lhe a morenice natural. Ensandecidos, mas ainda com um pouco de controle emocional os que se desejavam não avançaram em suas pretensões. Henrique bolinava e pensava em textos pretéritos onde escreveu excitado:

"... Minha excelsa morada é lúdica, protegida por coxas divinais, tem pêlos negros, lisos como um tapete compacto, sui-generis, profanos, sedosos como a neve negra dos meus coloridos sonhos mundanos; tem forma triangular, boca oval, vertical, superprotegida por dobras macias róseas, perfumadas como jasmim”.

Nesses pensamentos foi surpreendido pela hora da despedida. Analu não podia chegar altas horas em sua casa, pois estava sendo vigiada, demasiada controlada por familiares. Ademais, no dia seguinte seria a primeira aula de Analu que, incentivada e motivada, resolvera voltar a estudar com mais afinco do que antes. Ambos estavam felizes.

Henrique foi deixar sua ex-aluna em casa e beijou-lhe a mão delicada. Não é demais repetir: Enxameiam, por isso mesmo, na sociedade, os solitários por livre opção e os outros que se consideram marginalizados ou são deixados a distancia pelas conveniências dos grupos.

Não era o caso dos que ousaram vencer seus medos e receios, suas conveniências, bloqueios familiares e religiosos. Naquela noite, que desejaram não ter fim, puseram suas línguas para se digladiarem na busca de um mesmo espaço nas bocas úmidas e sequiosas. Não foi possível, mas Henrique também desejava e queria explorar, sem limites, sem culpa, sua atapetada e perfumada excelsa moradia lúdica.