CARTA

Meu amor,

naquela noite em que se foi, fiquei à porta, olhando o mundo deserto e escuro. Minhas mãos, agora inúteis, esboçaram gestos de dor e desalento e você nem viu porque, inexorável, já dobrara a esquina. Não consegui voltar e olhar para os móveis insensíveis à minha dor, apesar de ainda guardar o calor do seu corpo neles. Para que ainda ter móveis? E aqueles quadros na paredes? A quem contemplarão se sua beleza está ausente? Meus olhos estão secos, árida a alma, tão deserta quanto a casa, a rua, a vida. Os cachorros não entendem nada e estão pensativos e tristes, imaginando que morri porque me vêem apenas invólucro. Não há mais perfumes na casa morta, o seu chocolate secou e há muito, desvaneceu-se o seu perfume. O aroma dos seus beijos, que estavam em meu corpo, ainda está aqui, doendo. As flores? Permanecem nos vasos, mudas e secas, que a vida você levou delas.

Dizem que ando distraída. É que, às vezes, como criança, ainda olho nuvens procurando-o nelas. Inutilmente porém, quase esqueci seu rosto. Só não esqueço o sabor na minha boca deixado por sua pele, nem seus olhos brincando de pega-pega nos meus pés. Não esqueço, não esqueço, não esqueço nunca e isso dói mais que sua ausência. Essas lembranças equivocadas são maiores que o seu não-estar e permanecem, físicas. Seu legado para mim é essa alma desatenta, só olhando para a perda. Não, não peço que volte, mas ainda hoje, permaneço à porta, esperando que a esquina se ilumine com seus passos viajantes.

Saramar
Enviado por Saramar em 21/03/2006
Código do texto: T126116