Poço

Esta manhã caí dentro de mim como quem cai num poço. Encontro-me rastejando, escorregando entre essas pedras com limo que conheço tão bem. Embora estratégias infalíveis não me faltem para escapar daqui, durmo confortavelmente abraçado à ausência, sem me debater com a inexistência de fome e calor.

Diariamente me acalmo como quem tem à mão, dentro da segunda gaveta do armário, suas pílulas calmantes para crises nervosas. É vazio e ao mesmo tempo intenso, não sei bem.

Por dias tenho sucumbido a esse desejo de ser outro e a esperança às vezes me pega. Depois ela solta, e eu escapo de volta para o poço. Imagino que mais à frente me espera a vida, segurando na mão um saco de lições valiosas que não me valem. Essas falácias, ao contrário de me redimirem, enterram, sufocam.

Permaneço indiferente frente aos acontecimentos inquestionáveis, sucessivos eventos maravilhosos da natureza, coisas brotando, coisas chovendo, coisas morrendo, coisas se transformado como num balé contemporâneo.

Há tanta coisa no mundo para se ver e eu trancado no meu quarto. Sei que na vida sucedem-se as fases boas e ruins e que há tempo para tudo, aprendi no Eclesiastes. Tudo, Senhor, é um grande treino. mas, para quê?

O caso é que as coisas não andam bem e nada de cair um fruto maduro dessa árvore infrutífera. Há um mundo com tantas promessas ao cruzar da porta, mas sofro agora de uma estranha dor nas pernas que me estanca e impede de caminhar muito longe.

Sinto como se já tivesse vivido muito mais anos, talvez uma década inteira e toda vez que me permito um pequeno retrospecto, consigo me enxergar ainda com algum nível de inocência a salvo, fazendo previsões, apostando em mim, nas pessoas e num futuro promissor. Eram viagens, eram projetos, era até mesmo o amor. Era eu sorrindo para a vida e acreditando. Hoje sei que tudo isso restou apenas aqui, colado nesse álbum de fotografias.