Aurora da Existência

Prólogo:

Morte, óbito, falecimento ou passamento são termos que podem referir-se tanto ao término da vida de um organismo como ao estado desse organismo depois do evento. As alegorias comuns da morte são o Anjo da Morte, a cor negra, ou o famoso túnel com luminosidade ao fundo. Morte, para mim, é o fim ou o apagar da aurora da existência.

A morte é o fenômeno natural que mais se tem discutido tanto em religião, ciência, opiniões diversas. O Homem, desde o príncipio dos tempos, tem a caracterizado com misticismo, magia, mistério, segredo.

Após o fim da aurora de minha existência... Eu a reencontrarei seja em que tempo for. Só dependerei de um julgamento que sei será justo e imparcial.

Sei que mais cedo ou mais tarde vou morrer. Se isso não aconteceu quando a paixão excessiva pelos prazeres mundanos me consumia, certamente ocorrerá quando as engrenagens pouco azeitadas das articulações ringirem como faziam os espectros dos meus pesadelos infantis, arrastando correntes, nos corredores das incertezas medonhas.

Não importa que a morte sobrevenha rápida ou lenta, sofrida ou indolor, em chamas ou gélida; sob impacto de ferro calcinante e retorcido, argamassa frouxa, instrumento perfurocortante ou contundente; obstando os pulmões com gases, água ou lama; esgazeando-me os olhos e, por fim, cessando as funções vitais.

Não. Não importa que a morte nefasta e inexorável sobrevenha hoje ou amanhã. A aurora de minha existência foi suprema, soberba, altiva, embora como um cipreste florido com folhas negras. Neste exato momento em que escrevo estas linhas, sem nada predizer ou querer fazer ilação infausta, considero-me o símbolo de morte, luto e tristeza.

Os diletos leitores haverão de pensar e até dizer que neste texto escrevo antevendo minha desgraça. Não é assim que desejo parecer. Pragmático, não me despeço do nada e minhas palavras não são um vaticínio. Não fiz glória, tampouco fortuna, mas quando meus olhos não mais enxergarem os jardins floridos dos meus sonhos os que ficam saberão aquilatar meu esforço nas composições entre partes litigantes, entre os que se digladiavam por interesses divergentes.

Foge-me a razão na madrugada fria de minha solidão doida. Bate-me à porta o ser silencioso que conduz em sua mão esquerda um livro velho, entre o verde e o violeta, meio azulado. Na outra mão uma caneta dourada, reluzente; respingando tinta cinza-grafite.

Uma lufada folheia o livro de minha existência, das boas e más ações. Improfícua, julgada improdutiva, minha vida não mereceu registros substanciais. Por isso ali posso ver que não há nada escrito em suas páginas velhas, amareladas, algumas rasgadas, respingadas por manchas de sangue e lágrimas insossas, vertidas por inocentes imolados por minha sanha em existências pretéritas.

"Dramaturgos e romancistas, por via de regra, são umas pessoas áridas, frias e falsas." (Camilo Castelo Branco, Amor de salvação). Não pertenço a essa plêaide, mas não produzi o efeito desejado em minha missão terrena. Fui irrefreável nas ações e árido em demasia.

O olhar sombrio do ancião em andrajos parecia falar. Chispas lampejavam das pupilas nigérrimas e sua boca articulava uma frase que me causou medo. Ouvi, triste, quase inaudível, um balido plangente:

“Não mais beberás o perfume da Santa e teu olhar se apagará para o vislumbre de seu corpo angélico. Não mais sentirás o acme do gozo supremo e não mais sugarás o suco da essência divina do corpo que tanto veneras. Os beijos de fogo e dulcíssimos da amada não mais serão sorvidos. Virás comigo e te mostrarei como deverás fazer para voltar e novamente se deliciar com as benesses terrenas. O ciclo desta existência encerra-se hoje, mas é certo que num porvir poderás embalsamar os ares de uma nova e mais gratificante aurora da existência.”.

Sob minha ótica o saldo positivo do pretérito foi bom e me considero um bem-aventurado. Não importa se no livro da existência os registros não foram essenciais e, em vista disso, talvez os poucos remanescentes tenham sido apagados.

Hoje ou amanhã poderá se apagar essa aurora da existência pela silente criatura de clâmide escarlate com variações de um amarelo-ouro estonteante. É certo. Seguirei o espectro em paz.

A visita da criatura em andrajos não foi surpresa. Sua espada de fogo poderá, enfim, trespassar o coração rebelde do homem de boa-fé que na adolescência se banhava, imponente, no riacho de vinho doce do alvorecer de sua irreverência.

Adejará com asas douradas, pelo espaço infinito, o espírito jovial, que haverá de muito evoluir à procura de uma oportunidade, nova missão, provança justa. Certamente, em prazo exíguo, essa luz diligente irá espanejar com seus beijos cálidos e apaixonados as dúvidas da mente prodigiosa e criativa da Santa, cujo olhar brumoso, baço, embotado, reflete as agressões sofridas da família inglória na aurora de sua existência.