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Testemunha
 
Meu coração de ave, voando leve como o vento, já viu muita beleza e o mesmo tanto de dor. Voou para as bandas do Norte e viu a floresta infinita, os guarás em bando, as garças brancas e cinzas, os azulões, o peixe-boi, as tartarugas e outros irmãos de água, ar e terra. Viu também os povos ribeirinhos aos poucos desaparecerem, alguns, como os avacanoeiros, de pesca e canoagem, desceram nas correntezas dos rios e misturaram-se, as duas dezenas que restaram, a outros povos.
 
Seguindo, meu coração foi atrás de maria-fumaça, seringueiras e transamazônica até nunca mais. Eram os faraós no poder. Poder, sentimento não bem compreendido e muito menos bem utilizado. Tudo em larga escala: beleza, poderio, destruição... Do verde infinito pouco pode abraçar um olhar ao tempo de agora. Animais atravessam em desespero diante de caminhões de estrada em busca de abrigo. O que antes era vegetação se tornou primeiro um mar vermelho deixado pelo trator, depois campo negro deixado pelas queimadas e raízes serradas de árvores centenárias.

Bem ao tempo dos ancestrais a questão era a seca que castigava em focos de aridez e deserto. Muito dinheiro ia para salvar aqueles povos, o que talvez por falta de boas estradas, de ferro ou de asfalto, não chegava ao destino. Agora, não há mais focos de aridez, a fome atinge de Norte a Sul. E era para o Sul que meu coração me levaria junto com as águas na última viagem.

Vi construírem casas sobre as rochas e outras na areia, o dilúvio ser anunciado, projetos de reflorestamento e nutrição do solo  engavetados, como tantos outros que não encheriam o bolso das grandes empresas.  Fui testemunha de muitas águas, que silenciosas vieram e devastaram centenas, sem fazer distinção entre índios ou caucasianos, prudentes ou insensatos, fracos ou fortes. Levaram as casas e seus habitantes, deixaram o sal da desesperança e amargas interrogações. Algumas sobre onde estaria Deus nessa hora, ou o que fizemos de nossas vidas?
 
Quero voltar, mas não há mais caminho nem casa. Leve como um pássaro vai o homem que hoje, não apenas de um Deus, carece de humanidade para não se tornar testemunha de um sonho de destruição. Até quando?