FIGURANTE VIVO

Quem o vê assim de baixo, ilustrando a janela do velho sobrado pintado à tinta d´água – grafite manchado de chuva - taciturno, concentrado, com boina de pelos, pelos sob boina, retratando a natureza morta em seu quadro, imagina que aquele velho homem nada deve saber sobre ser feliz. Imagina, decerto, imagina. Dou certeza de minha parte, ah, sim! Assegura pelas paredes pastéis, pela solidão do momento, pelo melão partido na tela. Não, não deve saber quão bela pode ser a vida lá fora, começando da calçada da rua até os confins da lua, passando pelas vielas tórridas.

Aquela boina saíra de moda, ninguém mais a usa, e nem frio faz! Sabe Deus como aquela tinta a óleo não endurecera com o tempo, pois não imagino- não imagina - se - um homem desses fora do seu pequeno contexto, comprando-a numa loja, pedindo o tubo vermelho! Definitivamente.

Ora se ainda pinta a natureza morta, não deve saber o que fora feito na arte dali a agora.

Desdenham, suplantam o homem de boina em pelos e paredes pastéis. Dizem-lho ignorante, alienado, aéreo a este mundo. Especulam - no vácuo, tacanho, pobre de espírito. Pobres espíritos! Parecem almejar a fertilidade da pobreza em suas mentes com tantos impropérios. Falam do homem velho como se este mendigasse - lhes moedas, cobiçasse-lhes o pão, catasse anéis em suas fezes. E nada disso ele faz. É de quem lhe burla ilustre desconhecido figurando aquela rua para que possam passar por um cenário colorido. Figurante. Vivo. Mas em sua vida, nesta sim, sabe bem o papel incumbido.

Todas as falas e intenções. Conhece bem seus gestos e suas ações. Madrugadas inspiradas, a boca seca de nervosismo, o esperado beijo da pessoa amada. Conhece a dor, rejeição, fez de sua agonia forma de expressão. Fumou, calou, agiu de mais e de menos. Imbuiu-se até isolar-se por tanto conhecimento. Perdeu o chão quando lho julgaram pelos trejeitos de seu corpo. Fragilizou-se a partir desse momento, buscou ponderar sem êxito até se livrar de tantos pensamentos. Pesou satisfação e ressentimento e transformou toda a obsessão em instrumento. E, enquanto o logrou, brotaram aos seus, pés inesperados, então os juízes corporais viraram seus aliados e seu lado teórico semeou o aplicado. Brotaram aos seus, pés equilibrados, alegria genuína dessas que já viram sete vezes a ruína.

Felicidade real para ele veio assim, diria seu lar. E sem pensar em quem o mira ou se o fazem, segue em seu sobrado pintando paisagem e frutos cortados. Mas se lho dessem uma fala naquele instante, o direito unitário de se pronunciar, elegeria outro tema não o de antes, pois dele falariam os passantes e seu habitat.

Falaria de quadros, bons pratos ou declamaria um poema, afinal quem deveras vive a felicidade possui a serenidade, embora o vejam como um problema. Tem a ciência de seu valor ainda que para um transeunte apenas figure a cena. Conta alguma estória do passado ou segue simplesmente calado, porém vivo, pois sabe no seu íntimo ser amado, altivo e sabe tão literalmente a felicidade que sua condição oferece, que a seu modo agradece, sem em única oportunidade reduzi-la a um tema evasivo.

Juliana Santiago
Enviado por Juliana Santiago em 06/12/2008
Código do texto: T1322320
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.