Recordações

A noite vem chegando de mansinho. Traz consigo uma chuva fininha que bate lentamente sobre os vidros da janela, como se fosse o tic tac de um relógio marcando descompassadamente as batidas do meu coração, enquanto viajo pelo infinito do pensamento em busca de vagas lembranças.

Lá fora, um vento frio, quase imperceptível, sopra, mudando as folhas de lugar. Fico olhando esse cenário, meio perdido, vendo as nuvens se moverem formando castelos acinzentados, sinal de que a chuva não tarda em cair. Os postes com suas lâmpadas acesas contribuem para a formação de pequenas sombras que se perdem pelas ruas.

Sinto-me tomado por uma imensa saudade. Saudade dos tempos idos. Da infância, das brincadeiras, dos amigos que se foram, de tudo que ficou. O colégio João Calvino, tão próximo de casa, e lá eu não estudei, ficou apenas a vontade.

O seu Antônio – meu velho pai. Quando aqui chegou, encontrou uma região ainda agreste. Profissão: Tropeiro. Contribuiu muito para o desenvolvimento da região. Transportava no lombo de animais todo tipo de mercadorias de uma cidade para outra. Fazia esse trabalho dia após dia, percorrendo as regiões das Minas Gerais, tais como: “Alto Rio Doce, Mercês, Ouro Preto, Mariana, Santa Bárbara, Barão de Cocais, Ponte Nova, Rio Casca, Caratinga, Sobrália, Governador Valadares, Antônio Dias e a região que viria a ser chamada Vale do Aço”. Aqui, meu pai se fixou, trouxe consigo a dona Ana, minha querida mãe. Meu pai trabalhou na prestação de serviços como carroceiro, pois não havia veículos para transporte de cargas. Ele foi um mestre em domar animais bravios. Com isso, carroceiros e tropeiros de diversos lugares o procuravam para aprenderem o ofício ou para se beneficiarem dos seus conhecimentos. Ele foi um dos pioneiros desta região do Vale do Aço.

O doutor Albeny, outro pioneiro. Trabalhava no Hospital Siderúrgica – pertencente à Companhia Belgo Mineira, que aqui se instalara. Um médico que não media esforços para atender às pessoas. Não tinha tempo ruim com ele. Fazia sol ou chuva, não importava a hora, sempre que solicitado, ia de casa em casa. Recordo as vezes que meu pai saia de casa às pressas, altas horas da madrugada, pois minha mãe gritava de dor. Ele ia bater à porta do médico – o doutor Albeny. O qual, atencioso e prestativo vinha em socorro da minha querida mãe. Ele tinha sempre uma palavra de esperança. Além de médico, um amigo.

Ah! Como posso me esquecer da menininha sapeca, com sua boneca de pano a tagarelar pelos cantos, filha do seu Bidó e a dona Vitorina. O seu Manoel da venda, bom de papo, contador de histórias. Os passeios na fazenda da senhora Deusmira. Era uma verdadeira matriarca, sempre séria. Mas todos gostavam dela. Aquela comida que ela preparava, feita no fogão à lenha, o frango ensopado, a asa meio empenada como se quisesse voar.Mas era legal!

A dona Nazaré, rezadeira, benzedeira. Uma senhora muito amável e prestativa. Uma das primeiras moradoras do bairro, que era na realidade um buraco. Assim, quando se perguntava: “Onde você mora?” Sempre se respondia: “Eu moro no buraco da Nazaré!”. Era até engraçado, mas era uma forma simples e carinhosa de homenageá-la. Hoje, deixou de ser o “buraco” para ser o Bairro Nazaré, calmo e aconchegante.

A dona Sebastiana, comadre da minha mãe, uma senhora que estava sempre de bom humor. Dividia o seu tempo entre as costuras e uma boa pescaria. Pescar, pescar e pescar era o seu lazer preferido. Senhor Alfredo, um homem místico. Sempre bem impecável, terno escuro, sapatos bem engraxados. Gostava de conversar, passar experiência de vida às pessoas que dele se aproximavam. O senhor João Berto, fazedor de festas. Promovia sempre a fogueira de São João. Era um senhor alegre e brincalhão, assim como tantos outros que também deixaram sua contribuição para a história da região.

Dona Ingraça, tinha uma chácara onde havia muitas frutas. Na época de manga, ela passava maus momentos, pois a garotada ao saírem da escola sempre achavam uma maneira de surrupiar as deliciosas mangas. Seu João “catequista”, às vezes sério, outras vezes alegre e brincalhão, mas sempre disponível, ensinando o catecismo, fazendo com que aprendêssemos um pouco da Palavra de Deus. Dona Gertrudes, outra comadre da minha mãe. Uma excelente contadora de história. Em meio a tantas dificuldades por que passava, nunca a vi sem um sorriso nos lábios.

Ah! O senhor “peleja”, que apenas lembro o apelido. Pelejava tanto com os ônibus velhos que possuía, pois estavam sempre quebrados. Eram as velhas jardineiras. Poucos se lembram dele. Mas, ele e suas velhas jardineiras são partes da nossa história.

Puf!. . . Já é madrugada. Fiquei olhando a chuva e a recordar todos esses momentos, que não vi o tempo passar. Mas foi bom. Muito bom! Ah! Quanta saudade. . . Tempo bom! Quando criança, vendo a banda passar, sem lenço nem documento, nenhum passarinho pra cuidar. . .

17/02/95

Wilcaro Pastor
Enviado por Wilcaro Pastor em 02/04/2006
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