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A casa caiada
 
Nasci velho, carregando a memória do mundo,
manto roto e riso sério.
Lanterna suave em barco de papel descendendo pelo rio,
mirada sem brilho profundo.
Entre pião e redemoinho, revolta e sangue na alma,
aprendi a ser menino.
Não guardei a saudade da terra natal,
os sonhos de liberdade, nem a salvação danada.
Mais que nada, fui tropeço em carnavais,
pagode entre canaviais e facas.
Para não lembrar de mim não conto mais os anos,
fecho a porta à saudade e ao desengano.
Já não sofro. Também não morro...
Porque para morrer é preciso estar vivo.
Sementes de algodão e bandeirolas,
gritos de gol e multidões informes
desfilam diante dos olhos de quem pouco vê.
Ouvidos moucos, filhos partidos,
um Beethoven sem sinfonia.
Sirvo à morte da casa caiada.
Fuligem no teto, jarra sem girassóis,
mesa e cerimonial vazios.
Paredes altas, fantasmas obesos, descalços e censores:
- Olha ele ali! Fez xixi nas calças.
Eu era um velho. Hoje já nem sei.