Despedidas III

Morro de saudades do tempo em que era eu e de quando reconhecia o reflexo por trás do vidro e da enxaqueca por causa da farra do dia anterior e de como custava a dormir depois de um belo encontro. Morro de saudades de caminhar pela cinelândia e de poder entrar nos cinemas (quando ainda havia cinemas) e da febre pela espera de uma nova visita ao seu apartamento. Sinto falta do tempo em que a vida partia-se em mil possibilidades, sendo uns pedaços maiores, outros menores, mas em todos havia cerejas. Tenho sentido falta das pessoas, meu cachorro que morreu, meus discos que tocavam e de olhar pela janela quando o luar enchia tudo, a vida. Sinto saudade de viajar pela estrada de ferro entalhada no meu peito e de quando meu coração era um lugar infinito. Além disso, sinto a estranha falta de um teto (embora o tenha) e de um dia de chuva fina com as gotas bordando o quintal cheio de plantas e aventuras penduradas nas paredes. Sinto falta de minhas panelas, meus gatos, meus bordados, minha flauta, meu oratório, meu santo Antônio e de uma garrafa de conhaque barato. Sinto falta de companhia ou de uma solidão consentida e merecida. Sinto falta de sol, embora sendo noite e de festas para comemorar qualquer coisa. Um cativeiro invisível ergueu-se sobre mim e parece que nunca mais verei ninguém, só essas paredes castigadas, minhas lágrimas, meus dias de chão gelado e um pedaço de um pão qualquer que não tem gosto e água salobra. Gostaria de voltar para casa, mas os salvadores morreram, os abraços se foram para sempre, ninguém mais me deseja bom dia, nem elogia meu cabelo, nem me empresta um disco novo. Parece o fim da linha ou o início de uma grande dor que se instalará como um vírus em meu corpo até que eu sucumba num leito sombrio, com a solidão infinita de quem sabe que perdeu um dom precioso.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 03/02/2009
Código do texto: T1419867
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