abandono
Trancado dentro de sua confortável redoma, passava os dias enterrando milímetro a milímetro essa sensação de abandono. No primeiro dia, a crueza deste sentimento aparecia inevitável como um fenômeno da natureza. No segundo dia e nos subseqüentes, o que era uma indestrutível casca que se aboletava sobre a pele, foi secando e tornando-se quebradiça. Então, sua verdadeira pele apareceu, o que para ele foi uma surpresa um tanto agradável. A sensação de abandono foi desmoronando, como desmoronam todos os sentimentos frente ao estrondo da necessidade cotidiana de sobreviver.
E sobreviveu, depois de dias e noites inconfessáveis, garrafas de café e maços de cigarro. Ligações, laços desfeitos, despedidas. Já fazia então mais de dez dias. Tudo o que era disforme foi adquirindo contornos, a brincadeira retomou sua graça e a vida foi ganhando movimento.
O que perdera há dez dias não se pode medir apenas com o valor dos gestos e atitudes, o que perdera era significação, um modo de vida, não apenas uma agradável companhia, mas algo que o moldava para ser o que realmente dormia naquele corpo. Sim, aquele era seu corpo, um desconhecido de tantos anos.