como explicar saudade

É que choveu e subitamente todos os cabos e as conexões pararam de funcionar. É que já está tarde e sei no meu íntimo que não produzirei mais nada, embora insista em fazer contagens e agendamentos. É que amanhã é outro dia e a névoa que se espalha madrugada adentro forma um cobertor algodoado que desvendará pela manhã um profícuo dia útil. Ainda estou dentro do quarto e hoje fiz de tudo para que ele ficasse limpo, como se quisesse extinguir as coisas que me pesam, como se pudesse com o espanador e um pano úmido desfazer as minhas rugas; como se ao reorganizar os discos, todas as lágrimas dissipassem-se com a poeira, bailando no ar, rodopiando, indo embora com as velhas lembranças. É que agora faz um frio úmido e sinto uma imensa vontade de acender um cigarro, mas os donos da casa odeiam fumaça de cigarro e fico sublimando esse desejo. Como tantos outros desejos que venho sublimando. É que agora as janelas se abriram sozinhas e pude ver que há muito vento na noite, que o tempo pode mudar de uma hora para outra e que tudo passa, até os temporais. Mas não sem antes deixar escombros. Depois limpamos os escombros até que venha outro temporal. Mas aí já teremos a experiência de como limpar tudo mais rápido e a dor de ver tudo destruído será uma dor um pouco menorzinha e depois menor ainda até que a gente tenha a ilusão de que aprendeu a sofrer como um adulto e não como uma criança desesperada e insana querendo proteção. É que já começo a sentir sono e uma vontade danada de jogar conversa fora depois do jantar e tomar um cafezinho e depois imaginar o dia seguinte e jogar fumaça branca no céu negro, tecer comentários tolos sobre a lua e cantarolar como se tudo finalmente estivesse ameno, estável, palpável. É que as mãos parecem querer acariciar sozinhas sem ter ombros, nem cabelos, nem faces a acariciar. É como se as mãos soubessem já ir sozinhas em sua direção. É que já não sei mais o que dizer ou como disfarçar ou como fingir que há sentido nas pequenas coisas que restaram, nos telefonemas de amigos, nos filmes de comédia, na esperança de dias desanuviados.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 05/02/2009
Reeditado em 22/06/2009
Código do texto: T1422468
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