PIEDADE
Entrei no prédio com a pressa de chegar ao sofá, e a moderação de algum cansaço de fim da jornada.
Subi o primeiro lanço da escada, e no patamar do primeiro andar, senti mais do que vi uma pomba quieta na penumbra, encolhida no cantinho junto á porta do andar como quem aguarda pelo Senhor que lha vai abrir.
Um incómodo arrepio de piedade acompanhou-me até casa. Abri a porta e a minha mulher perguntou-me:
- Ainda lá está a pomba? Coitadinha ! Deve estar doente !
A minha filha entrou mais tarde e quis saber o que devíamos fazer à pomba.
Combinamos. Amanhã de manhã arranjo uma caixa de cartão e levo-a. Precisa de pão e água pelo menos. Refugiou-se aqui porque não pode ir como as outras para o Rossio ou Praça da Figueira, onde há milho fornecido pela terceira idade e pela primeira, porque as outras não vêem a vida, de tal modo estão embrenhadas nela, a não ser que o patrão as mande dar milho aos pombos: leia--se - desemprego.
De manhã peguei na caixa de cartão, abri-lhe um buraco de respiração, e desci.
A pomba não estava lá.
Minha filha disse que ouvira ainda bem cedo a mulher a dias exclamar na escada:
Hó filha! Que tá tu fácendo áqui, pobrézinha?
Não voltei a ver a pomba nem a negra Fátima, que lavava a escada, mas aquela fina pontada de piedade que me assolou o lar, sublimou-se em serena paz, na fé de foi Fátima a levá-la.