MARCEL PROUST ET LE TÉLÉPHONE À TOUCHES

Dentre as passagens poéticas que nos remetem à temática do surgimento do telefone - em finais do século XIX e início do XX –, ou melhor, do entrelaçamento entre poética e tecnologia, em Marcel Proust (in “Em busca do tempo perdido”), segue abaixo o trecho que considero o mais singular, o mais sublime, porque o mais poético, além de irônico, e também melancólico:

“... e somos como o personagem do conto a quem uma fada, ante o desejo que ele exprime, faz aparecer num clarão sobrenatural a sua avó ou a sua noiva, a folhear um livro, a chorar, a colher flores, bem perto do espectador e no entanto muito longe, no próprio lugar onde realmente se encontram. Para que esse milagre se realize, só temos de aproximar os lábios da prancheta mágica e chamar – algumas vezes um pouco longamente, admito-o – as Virgens Vigilantes cuja voz ouvimos a cada dia sem jamais lhes conhecer o rosto, e que são nossos Anjos da Guarda nas trevas vertiginosas a que vigiam ciumentamente as portas; as Todo-Poderosas por cuja intercessão os ausentes surgem a nosso lado, sem que seja permitido vê-los: as Danaides do invisível que sem cessar esvaziam, enchem, se transmitem as urnas dos sons; as irônicas Fúrias que, no momento em que murmuramos uma confidência a uma amiga, na esperança de que ninguém nos escuta, gritam-nos cruelmente: ‘Estou ouvindo’; as servas sempre irritadas do Mistério, as impertinentes sacerdotisas do Invisível, as Senhoritas do Telefone!

E, logo que o nosso chamado retiniu, na noite cheia de aparições para a qual só os nossos ouvidos se inclinam, um ruído leve – um ruído abstrato – o da distância supressa – e a voz do ser querido se dirige a nós.

É ele, é a sua voz que nos fala, que ali está. Mas como essa voz se acha longe! Quantas vezes não pude escutar senão com angústia, como se ante essa impossibilidade de ver, antes de longas horas de viagem, aquela cuja voz estava tão perto de meu ouvido, eu melhor sentisse o que há de decepcionante na aparência da mais doce aproximação, e a que distância podemos estar das pessoas amadas no momento em que parece que bastaria estendermos a mão para retê-las. Presença real a dessa voz tão próxima na separação efetiva! Mas antecipação também de uma separação eterna...”

... assim, belamente segue a poétic(nológico)-escritura proustiana (pp.120-121), até alcançar a página 122: nela encontramos o trecho no qual a menção ao mito de Orfeu (ou ao tema do exílio), do meu ponto de vista, é acentuada de forma lapidar pela escritura proustiana:

“... parecia-me que era já uma sombra querida que eu acabava de deixar perder-se entre as sombras, e, sozinho, diante do aparelho, continuava a repetir: ‘Avó, avó’, como Orfeu, ficando a sós, repete o nome da morta. Estava resolvido a deixar o posto telefônico..."

... e assim prossegue nas páginas 123,124... além d’outros inesquecíveis momentos do referido romance ou desse autêntico “Nilo da linguagem”,consoante Walter Benjamin.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PROUST, Marcel. “O caminho de Guermantes”. Tradução Mário Quintana. 8 ed. Rio de Janeiro: Globo, 1988 (Em busca do tempo perdido; volume 3)

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é outono de 2006