Diário noturno (3)

A cortina é de algodão cru com flores de renda que, no momento, me parecem gigantes. O abajur com cúpula branca tem uma lâmpada com luz fraca que, apesar de fraca, tem o poder de projetar uma sombra enorme na parede, uma sombra que começa pequena e cresce na direção do teto e, então, some. O vento que sopra vem das hélices que giram frenéticas e aliviam meu corpo da noite quente, aliviam meu corpo, mas não a mente.

Penso nas borboletas que invadiram o quintal, por todo lado elas estiveram com suas asas amarelas pousando aqui e ali, leves e saltitantes... tão fácil prá elas. Penso nos olhos da gata que um dia virou nossa lata e nunca mais a desvirou, tomou conta do espaço vazio que havia, encheu a casa de graça e simplesmente ficou. Penso em outros olhos com olhares de espelhos e outros de outros espelhos que um dia atravessaram os meus com sorrisos largos e outros contidos. Penso que sorrir faz bem, que chorar também, que a tristeza não tem cara feia, cara feia quem tem é a soberba que cruza os braços à nossa frente. Penso que um abraço sincero é aconchego prá alma, que abraçar a si mesmo é um exercício diário, alonga os braços e a auto-estima, que ficar em silêncio é dar um tempo pro tempo que quer o grito, o uivo, o gemido. Penso que o suspiro é a fuga de um pensamento que deslizou pro peito batendo de frente com o coração, às vezes tão vagabundo que não se cansa de ter esperança e ainda acredita nela que não pode ver uma janela aberta e se garante com a crença. Penso em mim mesma buscando preciosidades nesse leito feito de cascalho e lua.

As flores gigantes se movem sutilmente e as sombras crescentes envolvem o céu que me abriga. Mas as coisas são o que são e as hélices continuam girando seu vento de alívio apenas porque a noite é quente, e quente porque é verão.