Aquecimento

Era hora de acabar com o que já estava morto há muito tempo. Era hora de oficializar o término. Não podia ser coisa rápida. Queria sentir cada momento de desespero transformando-se em êxtase. Queria sentir o corpo apodrecendo. Queria explodir todas as partes. Despedaçar tudo. Mas uma explosão é instantânea. Uma bomba não seria a solução.

Queria arder por horas. Estar como no Inferno. Queimar qualquer pedaço que teimava estar vivo. Em chamas queria matar o corpo.

Acendi a fogueira de fogo funesto. Era ali que me cremaria. Em meio às labaredas. Pisei no calor ardido e finquei todo corpo. Nesse exato momento senti o fúnebre bafo envolvente.

Agora meu corpo pertencia somente ao fogo e o fogo, feroz, me consumia. Subia quente pelas pernas, percorria veias, aquecia ossos, passava entre os órgãos cozinhando cada célula.

Extasiava-me ver as faíscas de cores avermelhadas misturarem ao sangue vermelho vivo, e depois ia se tornando negro. Eram minhas cores derretendo.

Eu parada ali, carbonizando. Sentia tudo único. Sentia prazer a cada ardor.

A pele rasgando, os tecidos se ressecando e abrindo feridas profundas.

O cabelo fritando e cheirando a churrasco na brasa.

Os dentes rangendo e fazendo um tirilintar irritante, mas que também chegava a ser fantasticamente agradável.

A língua fervendo não sentia mais gosto algum, também não havia mais como abrir a boca e gritar. Não queria gritar de dor, se fosse gritar era por liberdade.

Os olhos ardiam mais do que a pimenta mais picant. Saíram lágrimas que rapidamente evaporaram. De tão incendiados, meus olhos chegaram a explodir, respingos de olhos flamejantes. A visão do meu mundo antigo se dissipou para qualquer lado.

O calor não era apenas externo. Meu interior exalava a ardência de um orgasmo que nunca havia sentido antes. Era como a junção inflamável de febre, sexo e menopausa. Tudo estava a altas temperaturas. Mais quente que o centro da terra. Era um furacão borbulhando larvas.

Depois de primeiros, segundos, terceiros e quantos mais graus de queimaduras, o corpo estava tostado. Ossos, órgãos e pele eram fragalhos. Não se sabia mais que aquilo era corpo. Apenas pó. Qualquer pó misturado aos fiapos de madeira. O fogo baixo ainda se mantinha e me assentava como uma cama quentinha.

O vento passou e levou parte das cinzas, para a praia próxima. O povo pisando em minhas micro-partículas. Meus restos junto aos castelos de areia. Conforme anoiteceu, a alta maré me arrastou para as ondas, até que cheguei a profundezas oceânicas.

Parte de mim ainda levada pelo vento, passeava em fragmentos pelas ruas, se arrastando em meio à sujeira. Entrando e saindo dos móveis de casas.

Ainda outra parte foi carregada por uma grande corrente de ar no alto sobrevoando cidades de todos os tipos, grandes ou pequenas. Avistando construções e pastos.

Então estava eu, em todos os lugares. Mar, terra, ar.

Renascida como uma Fênix. O fogo aqueceu em mim o que estava congelado.

Minha essência antes morta é que agora nasceu.

Engraçado, mas só fui viver depois que morri.

Até agora só foi um aquecimento!