MEMÓRIAS

Ando escrevendo minhas memórias...

Eu mato uma Helena e nasce outra, posto que nada é póstumo porque eu nasci antes de ter minha memória e essa não se desvanece, apesar de ser a cinza do cérebro.

Porque não principio nem acabo, porque o advento de uma morte bem morrida, colada em si mesmo, é o nascimento de uma vida sem calo, sem a sombra, sem o trazer da anterior.

É um recomeço, e pode até ser uma vitória, se se aprende a ressuscitar dos seus erros; a nascer do próprio ventre, num parto que traz mais a placenta de você dentro, da força com que cada um se nutre.

Da bestialidade com que temos que desovar pra sobreviver aos fetos e desafetos.

Na demosntração que viver é chegar perto da morte a cada dia, e sobreviver é um limiar de ressuscitar todo dia do escombro maior que é destinar.

O andar pela vida é crepitar pela sola do passo, é um cremar que cria, e às vezes nem dá em raízes. Seiva que não se controla, veneno que não se dissipa. Natureza dúbia do ir e vir, que o homem não atina. Variável é o sentir, mas que morfina alguma estagna. E isso vai compondo a experiência, os percalços de que é feita a memória.

Um quadro pendurado à beira da sala, tudo que se viveu pendurado, conhecimento, emoldurado em diplomas. Mas o verdadeiro fato, o que não consta no porta-retrato, vai mais reticente por dentro, bate e rebate, na parede de dentro, porque não forma linha concreta, mas é o saber mais certo, que memória alguma enxerga de perto.

Memória não usa óculos, memória não pensa só acumula recados, memória bicho que se coloca coleira, tem ela de perto e de longe, memória nasceu pra ser gerada...

Viver e ter a exata noção do que se viveu é uma contribuição para o contorno da estória velada e revelada, partes que se capitulam e se redefinem, as folhas soltas cheias de sangue e rosas, mas se a gente não separa gota de tempestade, no caso a lembrança se conserva una, não quebra, não dissocia, porque o conjunto é necessário a sequência da tela que contém também no caso a desmemória.

Dizem que o fosfato ajuda a memória, no meu caso, o peixe foi tanto, o milagre da multiplicação foi tamanho, que o que nasceu desses trinta anos é o resumo de uma obra que acaba em desobra, o exercício aqui é de trás pra frente, se morre pra nascer mais completo, se vive pra morrer mais inteira. É de uma inatividade que nasce a atividade, é de uma inércia que vem um movimento. É de uma falta de solução, é de um beco sem saída que nasce o melhor resultado.

A memória de que falo dá trabalho porque é a construção e ao mesmo tempo desconstrução de uma vida. Fator esse que deixa o prédio humano oco por dentro, mas com a viga e o alicerce redobrado na força da mente que corrige a idéia que não cabe mais no agora e se faz presente no último degrau porque assume o elevador que se apóia. No caso esse, lá se foi minha memória junto com a estória.

Helena Istiraneopulos
Enviado por Helena Istiraneopulos em 04/05/2006
Código do texto: T150461
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