Os ratos

Entrei na morada do esquecimento verde e deparei-me com um olhar vítreo que seguia a minha fala com dificuldade. Tratava-se de uma antiga casa de repasto num bairro afastado de tudo.

Percebi logo que nada mais lembrava a antiga movimentação de tropas e mulheres que enchiam as ruas de terra batida.

O casal que me olhava de soslaio estava corroído por décadas de um fastio inebriante. Todos os seus mesquinhos pensamentos e as suas improváveis esperanças foram metodicamente abortados.

Nenhum riso e nenhuma lágrima testemunharam a minha breve visita que, pelo menos inicialmente, prometia ser circunspeta e polida.

O filho mais velho teria uns quarenta anos hoje. Coitado, ele não se criou, um rato o devorou enquanto dormia. Não sofreu o pobre homem, pois estava anestesiado pelo efeito de várias doses de uma ótima cachaça curtida com madeira e ervas.

Agora, no entanto, só o remédio era o fiel amigo, o filho querido, a presença constante e o consolo possível para o casal mofado. Remédio bom, sem hora certa e com a validade do século passado.

Os ratos, no interregno da nossa prosa sem sentido, cruzaram o Rio Jordão numa profusão cinza de patas e rabos.

Doze pedras, doze tribos e, quando o abracei, senti também doze ossos ressaltados perfurando meu coração. Pensei imediatamente nos ratos roendo todos os seus ossinhos esburacados. Andavam tresloucados com todo o odor da morte pairando naqueles corredores entulhados de lembranças.

Um fausto banquete no castelo das sucatas.

O lixo enfeitava toda a mansarda. Ele transformou sua comida em pasto para o rebanho de roedores, o cartaz publicitário em quadro, o balde, em vaso ornamental, um pedaço de cano em uma, aristocrática, bengala do século XIX e os ratos em uma tropa bem disciplinada que tudo devorava.

Ofereceu-me uma balinha de menta e pareceu-me que sua mão peluda era uma enorme pata meio putrefata. Olhei sem saber o que sentir.

A chuva veio depressa e ele tentou correr naquele passinho típico do ancião que disputa uma corrida de obstáculos invisíveis para as pessoas com menos de oitenta anos. Continuou até ficar distante o suficiente para que eu pudesse respirar aliviado.

Os ratinhos certamente seriam a sua única e derradeira companhia.

Fechou a janela, nenhuma luz e nenhuma brisa seriam capazes de penetrar no reino dos ratos.

Avistei o velho agitando sua bengala num último e longo adeus. Fiquei comovido, mas, logo percebi o engano. Na verdade, ele lutava bravamente para salvar a sua amada da boca de rolha de uma enorme ratazana e do exército de ratos suicidas. Sozinho, ele sabia que a luta já estava decidida a mais de quarenta anos. Continuou até a bengala cair.

Capitulação e triunfo. Rendição e humilhação. Guinchos de vitória. A primeira dentada selou o tratado de paz.

Os roedores sempre terminam o seu trabalho com pressa, volúpia e perfeição.

Matheus Marques Nunes

Marques Nunes
Enviado por Marques Nunes em 05/06/2009
Código do texto: T1633839
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