Óculos
Como é difícil encarar a face do machismo. Como é sofrido encarar o escárnio do fracasso. Como é dolorido o acordar de um devaneio. De onde buscar forças se acordo atordoada querendo acreditar que foi um sonho ruim como um arroto entalato que oprime o esôfago e não faz questão de sair. Você tem que fazer força para desentalar. Tem que se sacudir para livrar-se do atordoamento.
São anos que passamos sonhando devaneios e de repente acordamos, ou é simplesmente a realidade que não se encaixa mais, como um sapato justo em um pé que não mais desinchará. O que fez este pé inchar? O que fez o sonhador acordar?
Que atenção seletiva direciona o olhar para aquilo que já temos?
Estamos embaixo de uma amendoeira, só percebemos que ela pode nos ferir após a queda de uma amêndoa em nossa cabeça. E então, se enxerga a quantidade de amêndoas no chão e se pensa: elas poderiam ter vindo na minha cabeça, todas, ao mesmo tempo, e me fariam desmaiar. Mas, elas caíram aos poucos, cada uma em um lugar imperceptível. Só percebemos que a amendoeira nos machucaria depois de sermos amendoados na idéia.
Que cegueira é essa que impede a proteção?
Esta cegueira é o amor. O amor são aqueles sonhos. O despertar é o fim do amor. O enxergar é o fim do amor.
Os óculos. Os óculos são a realidade. É preciso mantê-los limpos após colocá-los. Qualquer deslize os faz embaçarem.
Os óculos
Os óculos
O limpador de para-brisa
A tempestade
Cadê a estrada?
Os óculos
Acho que a sujeira é que começou a cair nas lentes.
Escrito em 08/jan/2004