Coisa viva
Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem
(Adriana Calcanhoto)
Eu me lembrei que provavelmente terei que conviver com pessoas que não me fazem arder. Odeio pessoas que não me fazem arder. Garanto, então, minha vastidão deslizando pela distância que nos afasta. O olhar se converte em extensibilidade da alma e
eu num vazio inexpressivo pelo acúmulo de distância,
muito embora me latejam o corpo os gestos mínimos.
Eu só queria umas palavras alcoólicas
para o vento embriagar minha boca.
E mais nada, que isso me basta: ardência e fluidez.
Odeio a insistência de algumas pessoas em transformar a vida em algo seguro, para que assim abordável, para que assim compreensível.
Faz falta que saibam que o inseguro, o móvel e
o incompreendido é toda sua fecundidade
Que no oco flutua a coisa viva:
gaguejar abismos existenciais:
num silêncio único de nascer a música
Enquanto isso é uma linguagem com cintilações que tropeçam em argumentos vulgares, com pervertidos instantes dolorosos pela descoberta.
Demoro-me, sem saber o que faço, nos restos da noite que vão deixando pelo ar. E nesse obscuro ato, jamais formulado,
formulo minha tristeza
E eu escrevo à luz de vela, e com um prego enferrujado fixando em moldura a linguagem:
Fixação. Escrever quer fixar. Quer o seguro, o abordável,
mas quer o incompreendido, ou ainda, quer compreender.
Eu que não compreendo nada,
escrevo:
com dedos de água e os olhos guiando pássaros,
escrevo:
sou a minha incompreensão