O LEITO DA DESPEDIDA (à memória da minha mãe)

Ela estava aos 86 anos. Não caminhava mais. Uma fortaleza derrubada. Impressionante ver a natureza eliminar a capacidade de alguém caminhar. Mas a mente voava longos e infindáveis vôos. O universo era uma simplicidade pra aquela mulher. Ela acordava o sol. Acendia a lua e as estrelas. Fazia as estações do ano. Fazia a clorofila das plantas e as raízes das mangueiras e coqueiros. Coloria as florezinhas das begônias. Amimosava os crótons. Acariciava a terra no quintal. Falava com os pássaros. Dominava as cobras e espantava dos muros os lagartos. Cozinhava gostoso. Arrumava as camas com cheiro e amor. Acendia velas, conversava com os santos barrocos herdados da avó e da bisavó. Varria a calçada. Formava professoras. Ensinava música. Cantava afinado. Gostava de poesia. Desenhava. Contava histórias de todo tipo. Amava a vida mais que todos. Não gostava de coisa alguma relacionada à morte. E dizia sempre que quando a morte viesse, ela faria uma careta tão feia que a morte fugiria.

Só qua a morte estava vendo, ouvindo. Ficou amoitada esperando a fortaleza se distrair. E foi entrando silenciosa em seu corpo, minando pontos vitais. A grandiosa luta foi chegando ao fim. Na cama, no colchão d’água, ferida em sua grandeza e orgulho, uma rainha fazia caretas. Desafiava. E a miserável tomava conta do castelo. Olhava aquelas cenas porque não tive escolha. Fui fraquejando, sumindo, mas consegui. Contra duas fortalezas a morte perdeu um pouco de espaço.

Eu tinha certeza de que estava próximo o momento do golpe fatal, mas não imaginava que aconteceria desse momento a pouco mais de quarenta e oito horas. Olhava intensamente só para acreditar que não ganharemos jamais essa batalha. Estava se aproximando a hora do Ângelus, coloquei Frank Sinatra para cantar My Way. E dancei no quarto, cantarolando. Depois, fiz a pergunta. Queria saber se estava ainda lúcida. Estava. Mãe, você ouve? Sim. Os olhos pareciam duas estrelinhas. Daquelas lá bem longe, lá no alto, trêmulas. Choveu diamantes nas estrelinhas. Dancei mais. Quem canta, mãe? Eu quis ter a certeza. Respondeu: FRANK SINATRA. No alto da emoção, aplaudi. É bonito? Suspirou profundamente e... Sim, de doer na alma. De matar.