notas de alfazema

“as flores

são mesmo

ingratas

a gente colhe

depois elas morrem

sem mais nem menos

como se entre nós

nunca tivesse

havido Vênus”

Paulo Leminski

Abro a porta do armário por um motivo qualquer banal. De dentro do domingo encardido, sua lembrança me invade em forma de desidratada-flor-de-alfazema. Pendurada atrás da porta, ocupando o lugar destinado a badulaques miúdos e cacos imprestáveis e inextinguíveis, surge uma almofadinha idiota, um sachê muito empoeirado e mal alinhavado, que cumpre a função pouco nobre de afastar as traças que ameaçam destruir de vez o que sobrou do tecido poído, lembrança largada para trás no dia do nosso último adeus.

Está recheada dessa florzinha – alguns até arriscariam mágica – boa para aplacar febres emocionais e muito singela (por isso mesmo tão incômoda), de uma delicadeza modesta, cores na linha do lilás. Universalmente simboliza pureza, castidade, longevidade, felicidade e todas essas coisas que em mim já se partiram.

Lá está o pequeno troço. Incomoda e dilacera os meus nervos, quando anuncia modestamente o germinar de minúsculas sementes heróicas em meio às ervas daninhas do meu feroz jardim de mágoas. Suas notas macias e ternas me encantam, por alguns momentos carimbam um passaporte imaginário rumo à terra natal do meu fabulário de infância. Nisso vêm o cheiro da minha avó, do mon bijou nas roupas passadas, do perfume de minha professora de balé. Essas coisas que amaciam a gente.

A essência vai sendo tragada aos poucos pelas fibras cansadas do meu pulmão, hoje tão impregnado das mortais toxinas noturnas. Cruelmente me purificam a alma nesta noite insone e, sem que eu possa encontrar na fuga algum fator capaz de resgatar minha dignidade, me deixo levar pela euforia de uma larga dose de esperança injetada à força do acaso no meu sangue existencial.

Eu, já rouco, um ser para sempre rouco, grito que não agüento mais. A súplica reverbera nas paredes de gelo e voltam para ferir meus próprios ouvidos. Então fecho a porta violentamente; com medo, num surto de realismo mórbido e caótico. Depois calo, penso, ando, lembro, esquizofrênico falo, ligo, desligo, escrevo, esqueço, deliro, desisto.

Sei que não demora muito e os resquícios daquilo que pretendia ser o nosso jardim apodreçam de vez e finalmente morram. Então eu as jogo fora, as flores já pretas, gosmentas, modorrentas, sem sonhos. Sepultadas, enfim, me esquecem e deixam de apastelar o dia com seus tons suaves. E eu não finjo mais primaveras.

Fico na paz outonal que conheço dentro do meu santuário mundo, dentro do qual vou profundamente meditar até encontrar o oxigênio que preciso, em meio aos escombros da promessa de mais essa vida não vivida. Depois é só acordar um dia desses, como que de um pesadelo febril, sorver um copo d’água morna, desamassar os cabelos e, despretensiosamente, nascer de novo, brotar de dentro da terra adubada com a matéria decomposta no decurso do longo ciclo das esperas. Para quem sabe, um dia, cultivar novas promessas.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 07/06/2006
Reeditado em 12/06/2006
Código do texto: T171119