Existir

Ela tinha o hábito de ler à noite.

Sempre algo tão profundo quanto belo.

Que pacificasse a alma durante o sono.

Mas antes de dormir, telefonava para alguém.

Pessoas queridas .

Em algumas ocasiões, para compartilhar o encantamento .

Em outras, para abrandar-lhes os terrores do dia.

E simplesmente lia. Com sua voz doce. Pausadamente.

Assim como quem acalenta crianças - calmamente -

apaziguava fantasmas adultos com poemas de ninar.

Certa vez, após ler e reler três textos de Clarice Lispector,

Ouviu assim de um sussuro já manso e sonolento :

- Sabe ... eu queria muito que você não existisse.

Que fosse imaterial, intangível. Somente uma voz na noite.

E que Clarice fosse o laço etéreo a unir nossos espíritos.

Só assim meu desejo por você não doeria tanto ...

Ela emudeceu por alguns segundos, perplexa.

Depois comentou que pensaria sobre o tema, num tom quase que

descontraído. Ou distraído.

Despediu-se e preparou-se para dormir.

Mas ficou horas tentando calcular o quão complexas e furiosas

dimensões de sofrimento alcançariam os desejos malogrados.

E nós, que na mais faminta condição animal-humana, nada mais

fazemos, além de desejar ?

Que nossa ancestral voracidade perpetua-se absoluta e insofismável ?

Quando a luz do dia iluminou seu olhar insone, ela sorriu.

Porque seu mais extenso desejo era SER em total amplitude,

por mais inclemente lhe fosse a dor. Daí fez-se leve.

E entregou-se densamente ao seu mais secreto êxtase.

De EXISTIR-SE.

Claudia Gadini

08.06.06