A MORTA FELIZ

Amanheceu estendida na calçada. O corpo descoberto de vida, vestido de nudeza. Seus olhos vítreos e entreabertos fitavam o vazio, acima da boca ovalada e congelada em um grito morto, por onde escorria um fiapo vermelho. Parecia ofertar um obscuro bom dia aos espectadores que formaram um círculo de carnívora novidade ao redor dela. Olhares curiosos arregalavam-se de todos os portões, janelas, cantos e esquinas, velando o cadáver da morta. Murmurinhos. Falatórios. Benzimentos. Alvoroços. Soluços. Risadas. A pequena platéia presenciava participativa, profanando a santidade da boneca de carne e osso despencada, esparramada sobre os quadriculados da calçada fria. Ninguém sabia nem conhecia a morta trazida pelo amanhecer. No edifício em frente, apenas uma janela entreaberta revelava os dois lados de uma cortina branca se abanando, sorrindo escancarada, asas esquecidas expostas ao vento num silencioso adeus. Acenderam uma vela para iluminar a sua tristeza. Em seguida estenderam um lençol imaculado a fim de esconderem de si mesmos aquela verdade morta, aquela nudez anônima, aquela dor calada. Ave abatida. Flor destrinçada. Sono petrificado. Uma sirene tocou, distante, rasgando o trágico ar matutino. Então alguém notou que uma de suas mãos era um cofre fortemente cerrado, lacrado e secreto. Levantaram seu punho esmorecido e abriram seus dedos quase rígidos. O pequeno objeto fino e dourado, único vestígio por ela carregado, saltou da sua pálida caixa despalmada e rolou em círculos pelo chão, embrenhando-se aos pés do povo, rumo à sarjeta. Era um simples anel. Uma aliança de casamento, pequena algema da vida. Seu grilhão dourado. Estava, enfim, livre.

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Santamaria
Enviado por Santamaria em 12/06/2006
Reeditado em 12/06/2006
Código do texto: T173864