BRAÇOS CRUZADOS

Uma criança atravessou a rua enquanto um jovem tagarelava esnobe com uma senhora de meia idade. Era uma senhora elegante, que acabara de sair de um carro importado. Daí, talvez, tanta atenção. E a criança foi atropelada. Lá estava o corpo estendido no chão, enquanto rugas de preocupação assomavam o rosto da senhora e ares de pesar dominavam o rapaz. A senhora despediu-se e entrou no carro novamente. Ligou o motor. Partiu. O rapaz foi embora. A ambulância chegou. A menina foi levada para o hospital. Não se sabe o que sucedeu. No céu, cortando o azul anil, um pombo solitário voa. Asas bem abertas, planando esperanças. O horizonte é vasto. E a brisa da tarde entoa canções da natureza viva. Enquanto isso, cá embaixo, homens apressados continuam a vida. O mundo gira. A roda-gigante não pode parar. É o formigueiro humano num labor frenético pela existência. Da padaria ao lado o cheiro fresco de pão. O trigo amarelo foi parar nas prateleiras do supermercado. Há fome. Mas o cheiro se espalha no ar. Muitos se alimentarão apenas dele. E levarão suas vidas. E farão com que a existência prossiga. Não sei por que, mas, depois da menina, do atropelamento, da senhora, do rapaz, do pombo e do pão, vi um caixão! Acho que, nesta altura, já era sonho. E, diferentemente de outros mortos, aquele estava com os braços cruzados dentro do esquife. Deve ter morrido assim. Era emblemático! Quem sabe, a expressão de uma vida. O féretro seguiu para o Jardim da Saudade. Céu aberto. E o morto olhava os pássaros que voejavam livres e soltos nos céus. Olhava, mas não via! Quantos humanos seres cabem dentro de um caixão daqueles?

Jess
Enviado por Jess em 14/06/2006
Reeditado em 26/06/2006
Código do texto: T175169