Memórias de Ubatuba.

Estávamos jantando quando tudo aconteceu.

Vi sua bílis verde escorrer na cuia amarela. Era 16 de Fevereiro de 1554 no triste país azul.

Maíra, definitivamente, não conseguiu digerir o francês.

Resolveu fugir da aldeia e correr o mundo. Para ela não havia mais volta. Ulisses tropical, sem reino e sem Penélope.

Confesso que no desespero do meu nojo, meus olhos buscaram a escuridão – a minha própria e intensa escuridão. Lívido, porém, desafiei o processo civilizador, voltei-me para Maíra que, depois de caminhar várias léguas, permanecia imóvel. Contemplava, provavelmente, sua obra inacabada e seus projetos vindouros. Afoito, como sempre, quis acabar com a sua inércia e bati vigorosamente no seu rosto. O sangue escorreu pelo meu corpo.

Ela rapidamente começou a tirar a sua roupa e com suas lindas ancas descobertas caminhou lentamente sem direção. Seu caminhar desnudo, seu movimento sensual e seu olhar repleto de promessas causou a primeira revolta naquelas praias. A sociedade ficou paralisada.

Mais tarde, o historiador português, Castro do Alentejo descreveria o episódio de fundação da nossa primeira cidade e a escolha da sua santa padroeira.

Senti um ciúme que dilacerou todos os meus projetos. Mesmo assim continuava acompanhando Maíra pelo vasto litoral. Ela refletia a imagem dos dias de guerra, uma luta pelo nada, contra toda a razão, errante, mas fascinante como uma solitária lhama peruana sob o sol dos Andes.

As fortalezas ficaram vazias. Os canaviais foram destruídos. Nas cidades, todas as igrejas foram queimadas e saqueadas. Uma multidão seguiu Maíra. Ela andava provocante e despudorada, cega para os olhares desconcertantes dos velhos senhores da Terra de Santa Cruz.

Repentinamente o som da fúria jesuíta interrompeu sua caminhada. Morreu e depois foi condenada pelo Santo Tribunal da Inquisição.

Covardemente não protestei. O único que ousou lamuriar o seu fim, mesmo sob o peso da chibata do feitor, foi degredado e posto a ferros na primeira nau que rumou para o Cabo da Boa Esperança.

Antes de sumir na multidão, vi pela última vez a mesma expressão de indiferença que sempre caracterizou Maíra.

Sozinho, fui invadido pela ansiedade e desespero. Não vomitei minhas frustrações diante de Maíra.

Subi a serra com a certeza de não encontrar a trilha de volta.

Febril, andei por todos os sertões e sonhei com as ondas de Ubatuba.

Desbravei com os olhos de febre e até os diamantes perderam o seu encanto.

Matheus Marques Nunes

Marques Nunes
Enviado por Marques Nunes em 31/08/2009
Código do texto: T1785209
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